Por: Fernando Molica

A PEC da licença para roubar

Deputado Renato Freitas (PT) teve o mandato de vereador cassado por colegas | Foto: Rodrigo Fonseca/CMC

Muitos deputados e senadores querem aprovar uma emenda constitucional que dá aos parlamentares o direito de cometer crimes com uma garantia quase absoluta de que não serão punidos. Isso vale para roubo, furto, corrupção ativa ou passiva, tentativa de golpe de Estado, assassinatos.

Pela proposta, que ainda está sendo discutida, voltaria a constar da Constituição a necessidade de que cada casa legislativa — Câmara ou Senado — dê licença para que um de seus integrantes seja processado criminalmente. Sem a autorização, nada de processo, cadeia, advogado, promotor, juízes. Uma espécie de bye, bye, Xandão.

A desculpa para ressuscitar esse absurdo é a defesa das prerrogativas parlamentares. O princípio é até nobre, a garantia de que poderes discricionários não impedirão o exercício de mandatos conferidos pela população; cada parlamentar, afinal, representa um grupo de eleitores. A cassação arbitrária de um deles, e, no limite, sua prisão, representaria assim um atentado à vontade manifestada nas urnas.

Foi essa salvaguarda que, em 1968, permitiu que a Câmara impedisse o regime militar de processar o deputado Márcio Moreira Alves, acusado de desrespeitar as Forças Armadas. A negativa foi o estompim de uma crise institucional que geraria o AI-5 e implantaria a ditadura ampla, geral e irrestrita.

O problema é dar a um parlamentar o direito à impunidade, ainda mais depois que o Congresso Nacional se transformou numa espécie de gastador-geral da República, deu a si mesmo o direito de determinar gastos bilionários via emendas parlamentares.

O mecanismo, como indicam investigações da Polícia Federal, várias reportagens e processos do Supremo Tribunal Federal, facilitou o desvio de recursos públicos. Os descaminhos da administração pública brasileira permitem não apenas que um político apadrinhe uma obra, mas que vire seu sócio. 

Será muito difícil que, imbuídos por um evidente corporativismo, deputados e senadores aprovem a abertura de processos contra colegas suspeitos de desvio de emendas ou relacionados à prática de rachadinhas: nunca se sabe quem será o próximo a ser acusado, não é mesmo?

Além do mais, o caso do deputado estadual Renato Freitas, do PT do Paraná, mostra que a perseguição às prerrogativas parlamentares pode partir dos próprios colegas. Ele chegou a ter seu mandato de vereador cassado pelos próprios colegas por ter participado de um ato anti-racismo numa igreja da cidade.

Eleito deputado estadual, ele foi vítima de uma nova punição: teve seu mandato suspenso por 30 dias, de novo por seus próprios colegas, sob a acusação de ter facilitado a entrada de manifestantes no prédio da Assembleia em 2024. A punição foi corroborada pela  presidente do Tribunal de Justiça do Paraná, desembargadora Lidia Maejima, que anulou liminar obtida pelo deputado para suspender a medida.

O novo ataque a Freitas indica a possibilidade de uma espécie de orquestração parlamentar para impedir a manifestação de voz discordante da maioria, o que representa um ataque direto às prerrogativas do deputado e, mais, impede a representação de uma parcela relevante dos eleitores paranaenses.

É até justo que parlamentares queriam detalhar sua inviolabilidade constitucional em relação a opiniões, palavras e votos, ainda que alguns deles tentam usar esse direito não para defender posições políticas, mas para x ofender — não é razoável que alguém tenha o direito de xingar a mãe alheia. Mas é um tema que merece discussão.

O fim do foro privilegiado é outro assunto que deve ser trabalhado, apesar do oportunismo de bolsonaristas que querem apressá-lo para livrar a cara de acusados pela tentativa de golpe. Mas é complicado admitir que, numa república, uns tantos — e não são poucos — escapem do processo judicial normal. Mas não dá para aprovar o direito à impunidade, algo que, na prática, pode virar uma licença para roubar.