"Toda língua é uma língua falada errada. Uma língua nasceu quando os falantes estão cansados de falar errado uma língua. Então eles combinam: vamo combinar que o errado é certo? Vamo combinar de errar junto?"
É em torno dessa infinita possibilidade de combinados resultantes de erros que viram acertos e que, por sua vez, geram novos erros que viram acertos — e é por aí que vamos, ou que nós vai — que Gregorio Duvivier constrói "O céu da língua", monólogo que escreveu e interpreta, em cartaz no Teatro Casa Grande, no Rio, até 31 de agosto.
O figurino que remete a Luís de Camões indica o caminho; melhor, os caminhos. A peça, que é aberta com os versos iniciais de "Os lusíadas", propõe uma jornada por mares já navegados e por outros ainda desconhecidos e incertos.
Jornadas que vão muito além de Taprobana citada na primeira estrofe do poema, que superam dúvidas, críticas e ortodoxias dos que se revezam no papel de Velho do Restelo, pessimistas que tentam manter a língua sob estreita vigilância e procuram conter suas fantasias.
O autor e ator usa a poesia como bússola imprecisa, que aponta para diferentes nortes — todos factíveis, respaldados pelas infinitas possibilidades de um idioma que, como ressalta o texto, nasce do galego, "que tinha o hábito de jogar fora muitos L intervocálicos". Ele exemplifica: dolor virou door, color virou coor. Um processo detalhado no espetacular "Latim em pó" (Companhia das Letras), de Caetano Galindo, um dos livros que servem de referência à peça.
Ao longo do engraçadíssimo texto, Gregorio revela como línguas são resultado de pactos entre seus falantes, que sempre se movimentam em busca de consensos capazes de traduzir situações, nem que para isso sejam obrigadas a deixar tantas palavras pelo caminho.
No palco, ressalta esses trancos e barrancos que permitem nossos entendimentos e divergências: "Eu só consigo existir graças às palavras. Tenho por elas um amor tátil. Moro nessa ilha do verbal em que tudo tem nome".
O ator brinca com palavras, que usadas para viabilizar e reafirmar o discurso poético, são capazes de negar o que dizem. Como no caso do narrador de "Trem das onze", que fica mais de três minutos dizendo para a amada que não pode ficar nem mais um minuto com ela.
A partir do exemplo das diferentes palavras que esquimós usam para definir neve, ele frisa que temos 37 opções para tratar de bagunça, "a nossa neve": entre elas, auê, fuzuê, mafuá, fuzarca, bafarunda. E propõe:
"O Brasil só toma jeito no dia em que ele desistir de tomar jeito e investir pesado na indústria do escarcéu pra exportar pro resto do mundo nossa tecnologia do furdunço". Assim, conclui, um dia, quem sabe, nossas instituições estarão à altura do nosso carnaval".
Já para o seu trecho final, a peça parte de versos de Orestes Barbosa para "Chão de estrelas" ("Tu pisavas nos astros distraída"), emenda com a versão de Caetano Veloso ("Tropeçavas nos astros desastrada") e aponta para futuras reelaborações de versos tão bonitos.
O céu da língua é inquieto, azul e também cheio de nuvens e trovões, sustenta o sol e vem molhado de muita chuva, não há meteorologista capaz de prever seu comportamento.