Foi preciso que o youtuber Felca — Felipe Bressanim Pereira — gritasse que crianças e adolescentes estavam nus e eram explorados nas redes sociais para que a sociedade olhasse para si e enxergasse o que há muitos anos era esfregado na cara de todos, com a cumplicidade quase geral da nação.
No post que já teve mais de 36 milhões de visualizações, Felca mostra cenas repugnantes produzidas por pessoas como Hytalo Santos, um sujeito que contava com audiência e, mesmo, parceria de muita gente.
Em dezembro do ano passado, a Justiça da Paraíba determinou que a atriz e apresentadora Antônia Fontenelle retirasse do ar post em que acusava Santos de explorar e sexualizar menores de idade.
Ele e outros criminosos têm que ser investigados e punidos, mas não se pode apenas terceirizar todas as culpas. Eles fornecem o que uma parte significativa da sociedade gosta de ver, contam também com a conivência de pais de crianças e adolescentes, uma forma de responsabilidade compartilhada.
Esses produtores são também estimulados e respaldados pelos que falam em censura cada vez que se busca uma forma de se regulamentar redes sociais, como se a internet não tivesse que se submeter a leis mais amplas. O fato de ter carteira de motorista não dá a ninguém o direito de avançar sinais vermelhos, transitar pela contramão e de abusar da velocidade.
O país tem uma relação extremamente dúbia com a sexualidade e gosta de flertar com a perversão. Nos anos 1990, crianças eram estimuladas a dançarem na boquinha da garrafa, em festas infantis e até em atrações televisivas voltadas para a família brasileira. Uma família que há séculos é conivente com abusos cometidos em seus lares — a grande maioria dos casos ocorre dentro das casas.
A vergonhosa distribuição de renda entre nós contribui de maneira decisiva para o problema ao empurrar crianças para o mercado da exploração sexual.
Vingou entre nós um comportamento curioso, em que um excesso de moralismo no que é pregado convive com uma extrema tolerância em relação ao que se faz. Algo que, mais do que contraditório, tem função complementar.
Por razões culturais muito baseadas em princípios religiosos, adotou-se por aqui a lógica da repressão aos desejos, de associá-los ao pecado, como isso fosse capaz de impedir o que se sente.
O crescimento de setores evangélicos nas últimas décadas fez agravar a situação ao radicalizar a luta contra o corpo e, assim, jogar para baixo do tapete o que, como escreveu Chico Buarque, não tem governo ou vergonha, nem nunca terá.
O oportunismo político que aposta no controle da sexualidade alheia contribui muito para a exploração e para a canalhice. Campanhas contra a educação sexual nas escolas e que tentam impedir a aceitação de diferenças são estimuladas, como se o desejo fosse algo imposto a cada de um nós, que não nos acompanhasse desde sempre.
E tome de falar em proteção da inocência de crianças, uma maneira cruel de não deixar que elas sejam alertadas para violências e abusos que muitas vezes se manifestam de forma sutil, como carícias, toques e agrados. Impedir que meninas e meninos sejam ensinados sobre isso é uma forma de desprotegê-los, de reforçar sua fragilidade, permitir supostos atenuantes como "pintou um clima".
Como ressaltado pelo próprio Felca, a adultização não se revela apenas no caso dos abusos de caráter sexual, está relacionada também a outras formas de exploração, como o estímulo para que crianças assumam papéis de adultos, atuem até como pregadores. Um tipo de trabalho infantil e adolescente que contraria o que é determinado pela Constituição.
A indignação contra os abusadores da internet é fundamental, mas não pode ser algo isolado. É preciso criar mecanismos de proteção que sejam capazes de conter e punir também quem viabiliza esse tipo de crime, aqueles que apontam o dedo para o outro e não se olham no espelho.