A prisão de Jair Bolsonaro reforça a necessidade de o país regulamentar o uso de redes sociais, até para que sejam criados parâmetros que definam a eventual possibilidade de o Judiciário decretar censura prévia, algo proibido pela Constituição.
Ao que tudo indica, o ex-presidente será — merecidamente — condenado pela tentativa de golpe de Estado, mas isso não deveria impedi-lo de se expressar, e de, na sequência, pagar por crimes que cometa em suas falas.
O texto constitucional é claro ao vedar "toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística". Isso não quer dizer que fiquemos impunes ao cometer crimes no exercício desta liberdade de expressão.
O Supremo Tribunal Federal acertou ao tomar medidas para impedir a fuga do ex-presidente, que já havia flertado com o pedido de exílio ao passar duas noites na Embaixada da Hungria ao ter seu passaporte apreendido — a aliança com Donald Trump também favoreceria uma saída do país. Mas a corte se excedeu ao impedir o acesso do ex-presidente a redes sociais.
De acordo com a maior de nossas leis, não se pode censurar alguém com base na previsão de que, ao se manifestar, a pessoa irá cometer um crime. Esse tipo de delito tem que ser efetivado, para, depois, ser punido.
O Judiciário, em diferentes instâncias, tem impedido a livre expressão em diversos casos, até mesmo para impedir a publicação de acusações contra magistrados e autoridades.
Promulgada muito antes da invenção da internet, a Constituição não poderia prever o caos que seria provocado nas redes sociais, o tamanho da disseminação anônima de mentiras e de uma imensa variedade de crimes.
Os constituintes não tinham como imaginar a máquina de desinformação e de destruição da democracia e da liberdade que seria construída, não haveria como se pensar na distribuição industrial de acusações inverídicas que seria criada.
O processo político sempre foi contaminado por boatos e falsidades, são incontáveis os casos em que candidatos foram prejudicados por falsas informações. A velocidade do processo eleitoral facilita esse tipo de crime: apuradas as urnas, fica mais complicado apurar responsabilidades e punir os responsáveis pelas mentiras. A Justiça Eleitoral costuma demonstrar uma tolerância absurda com falsidades espalhadas às vésperas ou mesmo no dia da eleição.
Alinhado com a nova extrema direita internacional, o bolsonarismo se especializou na proliferação escancarada de falsidades, produziu uma espécie de linha de montagem de pequenas bombas atômicas que passaram a ser fornecidas a um público capaz de aceitar qualquer acusação contra os adversários.
Tamanha quantidade de crimes, porém, só pôde ser efetivada graças à leniência da polícia, do Ministério Público e da Justiça. A mesma lentidão e incompetência que se verifica na apuração de delitos como as novas faces do estelionato.
Para garantir sua impunidade, bandidos contam com a facilidade de ocultação de suas digitais e com uma legislação não preparada para a enxurrada de casos de incitação ao crime, de injúrias, calúnias e difamações. Sabem também utilizar o falso argumento de defesa de uma liberdade absoluta, como se tivéssemos o direito, por exemplo, de estimular, sem risco de punição, o racismo, a pedofilia, os estupros e os assassinatos.
O Código Penal pune o crime que, iniciado, "não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente". Lei sancionada por Bolsonaro também considera crime a tentativa de golpe de Estado e abolição do Estado de Direito (seria impossível punir golpistas que chegassem ao poder).
Mas não se pode impedir alguém de se manifestar com base na suposição de que, ao falar, ele ou ela cometerá um crime. O que pode e deve fazer é punir com rapidez os abusos anteriores.
Bolsonaro já disse e publicou muitos desatinos capazes de gerar condenações, mas vinha sendo poupado pela Justiça. A mesma Justiça que, agora, decide puni-lo pelo que ainda não disse.