"Mas deu muito dó dela": a frase chamou a atenção pelo fato em si e pelo jeito com que foi contado. Normal que sintamos pena e dor por alguém, mas, em Minas, essa comiseração vai além, dá dó.
Assim, escrita, a expressão fica meio esquisita, infantil, remete a antigas cartilhas de alfabetização — da, de, di, do, du —, não dá idea nem de uma fração da piedade e da solidariedade que o interlocutor quis transmitir ao falar. Ninguém sente e fala dó como mineiro.
É que, por mais que tentemos maneiras de aproximação com a linguagem oral, é impossível reproduzir as múltiplas facetas presentes no jeito de falar, na entonação, no ritmo, na pronúncia, esse conjunto de variações que costumamos classificar de sotaque, algo que acaba incluindo o uso de determinadas palavras.
A definição de sotaque tende a um certo preconceito, ainda que carinhoso. Sotaque é aquilo que os outros têm, são variações que saltam aos nossos ouvidos porque, de alguma forma, diferem do padrão ao qual nos acostumamos desde muito pequenos.
Capital da colônia, do Império e da República por quase 200 anos, sede da Rádio Nacional e, depois, da TV Globo, o Rio é talvez a cidade brasileira cuja população menos se dê conta de que fala com sotaque — né mermo, Evandro Mesquita?
Temos dificuldade de admitir que nosso jeito de falar tem muito a ver com o dos portugueses, ao longo dos séculos, por aqui se estabeleceram. Em 1808, com a vinda da família real, o Rio passou a ser capital de um império europeu.
O português que aqui se falava era a linguagem do poder. Devidamente adaptado e adocicado, esse jeito de nos expressarmos evoluiu ao ponto de ser impossível diferenciar o que queremos dizer ao falarmos "isqueiro" ou "chiqueiro".
Tudo isso é só pra falar da alegria de, por três dias, ficar numa cidade mineira, de ouvir todas aquelas pessoas falarem de um jeito que me carregava de volta à infância, às minhas viagens a Viçosa, cidade que abrigaria minha família paterna, que viera da vizinha Cajuri.
Foi como se ficasse, de novo, cercado de tias e primos por todos os lados — e tome de "ó", "trem", "cê", de diminutivos que, de tão pequenos, terminam antes das sílabas regulamentares: "pouquim", "pertim", "quentim".
E foi assim que ouvi a interlocutora falar que sentira "dó" de alguém. Apesar da dramaticidade do relato, foi impossível segurar um sorriso carinhoso que marcava meu reencontro com a palavra.
Mineiros são, entre os brasileiros, os que mais se orgulham de seu sotaque. Não se cansam de brincar com isso, tratam de divulgar a história do jeito local de fazer café, o "Pó pô pó?" (tradução: "Pode pôr pó?" ).
Sotaques são uma forma de afirmação quase instintiva, um jeito de preservamos nossos primeiros contatos com a língua, o mais poderoso instrumento de conhecimento da vida e que reforça nossa condição humana.
Por mais que venhamos a aprimorar nossas habilidades com o idioma, e por mais expostos que estejamos a outras falas, tratamos de preservar nosso jeito original de nos expressarmos, aquele que nos foi sussurrado por nossos pais e avós, a pronúncia que nos fez descobrir que estávamos vivos, capazes de conversar com o mundo.
Ao falarmos com algum sotaque, indicamos de onde viemos, e que estamos, de alguma forma, protegidos pelo sopro de vida que, com tanto amor, nos foi passado ainda no colo e no berço.