Localizado às margens de três das mais importantes vias expressas do Rio e habitado por cerca de 140 mil pessoas, o complexo de favelas da Maré é uma das maiores provas da falência, não apenas do sistema de segurança fluminense, mas do próprio estado e, mesmo, do país.
A Maré, reconhecida como bairro desde 1988, tem pouco menos de 5 km² — a grosso modo, trata-se uma faixa entre a Avenida Brasil e a baía de Guanabara com cerca de seis quilômetros de comprimento e uns 800 metros de largura (ora mais larga, ora mais estreita). Este retângulo imperfeito, quase todo plano e encravado em área importante da cidade, bem perto do Centro, revela-se inexpugnável.
O Estado brasileiro — aí incluídas praticamente todas as suas instituições, não apenas policiais — revela-se incapaz de promover uma paz duradoura para os moradores da região e para todos os que passam por lá. As tais vias expressas unem diferentes zonas da cidade e são caminhos para o aeroporto internacional.
A resistência e fortalecimento de quadrilhas que dominam essas e outras favelas indicam incompetência ou cumplicidade dos aparelhos de Estado — vale apostar na segunda opção. Não se trata de cobrar o fim da criminalidade, da violência e de organizações criminosas que ameaçam tantas sociedades pelo mundo.
Mas é inconcebível que o país não consiga resolver um problema localizado, na cara de todo mundo, um crime que tem endereço, que tem CEP. Está ali, ó. A experiência das UPPs, Unidades de Polícia Pacificadora, mostrou o óbvio, que havia sim como o Estado restabelecer seu domínio em áreas dominadas por bandidos. Deveria ser inimaginável admitir a ideia de que há muitos e muitos territórios à margem dos princípios constitucionais.
Na última quarta, a polícia fez mais uma operação em comunidades da área, a 16ª do ano, de acordo com os registros entregues ao Ministério Público Estadual. Segundo o perfil Maré de Notícias, a ação durou dez horas, chegou a nove favelas, deixou duas pessoas feridas. Moradores relatam invasões de casas sem mandado judicial e depredação de patrimônio, principalmente veículos.
Às 5h25, os responsáveis pelo campus Manguinhos da Fundação Oswaldo Cruz enviaram um alerta para risco para os funcionários desta que é uma das mais relevantes instituições de pesquisas do país e que tem unidades na região. Foi pelo menos o quinto despachado apenas em 2025. Tanto transtorno em troco de nada — o tráfico, por lá, deve estar do mesmo jeito.
O modelo de operações policiais adotado há décadas no Rio serve apenas para reafirmar que esse tipo de invasão serve, principalmente, para causar pânico e mortes, inclusive entre policiais — ano passado, o sargento PM Jorge Henrique Galdino Cruz foi morto numa incursões.
Essas iniciativas servem também para autoridades simularem combate ao crime e disfarçarem a falta de vontade de investirem numa luta capaz de quebrar economicamente as quadrilhas. O fluxo de armas, drogas e munição não é interrompido.
O fortalecimento do poder das organizações criminosas ao longo de tantos anos demonstra, por si só, a inutilidade de tanta mobilização — e não vale culpar o Supremo Tribunal Federal. Mesmo durante a vigência plena da ADPF 635, que estabeleceu normas para operações em favelas, a polícia fazia cerca de três incursões diárias em comunidades pobres.
Nunca é demais lembrar que as organizações de esquerda que tentaram estabelecer um processo de guerrilha contra a ditadura militar e provocar uma revolução de caráter socialista jamais conseguiram dominar nem um pedacinho do território nacional, nem mesmo no Araguaia.
A desfaçatez com que criminosos mandam e desmandam indica a existência de uma espécie de pacto clandestino entre eles e cúmplices instalados no aparelho estatal (e não apenas nas polícias). Um acordão que normaliza a existência de territórios ocupados, que garante lucratividade e dá ao Estado o papel de agência reguladora do tráfico. Um negócio que inclui operações que aparentam confrontos, mas que só reafirmam os poderes dos que mandam.