A aprovação pelo Congresso do projeto que passa a boiada no meio ambiente mostra que parte da população — e não apenas os políticos — vê o país com os olhos dos invasores/colonizadores, como terra a ser explorada e saqueada. Uma lógica que inclui o extermínio de povos originários, que continuam a ser encarados por muita gente como entraves ao progresso.
Os crimes não são mais cometidos por estrangeiros que, em séculos passados, arrasavam terras e populações estrangeiras, locais e pessoas que não faziam parte de seu imaginário cultural ou sentimental.
Sequer é possível reabilitar pretextos morais e/ou religiosos que procuravam justificar as invasões e o domínio e escravização de povos. Os espoliadores atuais têm, sobre seus antepassados, a vantagem da sinceridade, querem apenas lucrar com a destruição e a morte.
Diferentemente dos que, a partir do fim do século XV, chegaram ao que viria a ser chamado de América, os exploradores de hoje sabem da fragilidade do planeta, dos riscos ambientais, das consequências do que promovem. A ganância e esse tipo de cegueira voluntária sequer levam em conta que o ataque a biomas como o da amazônia e o do cerrado compromete o futuro da atividade agrícola que, na marra, eles querem expandir.
Uma devastação de caráter suicida, já que prevê a devastação de territórios que pertencem a todos nós e nossos filhos, netos, bisnetos; eles agem como se não estivem botando fogo nas próprias casas.
O ardor com que tanta gente se dedica à destruição revela que, no fundo, essas pessoas não se sentem parte do Brasil. Amam, talvez, seus pequenos nichos, seus parentes, seus amigos, seus bairros — o resto é o resto.
No fundo, adotam a destruição por não terem qualquer tipo de empatia com o outro. Reproduzem uma lógica de exclusão e de racismo que até hoje naturaliza as distorções geradas pela escravidão, que tenta manter tudo do mesmo jeito.
Aos olhos dos devastadores, tão bem representados no Congresso, a Amazônia não é aqui, fica lá longe; indígenas não são vistos como humanos, mas como criaturas exóticas, estranhas, desprovidas de raciocínio, emoções, subjetividades e direitos.
No fundo, não é que eles atuem como invadores/colonizadores de outrora — eles são etrangeiros em seu próprio país, pessoas que não se identificam com está em volta, que não têm o menor afeto pela grande maioria dos que vivem aqui.
As ofensas e ironias dirigidas à deputada indígena Célia Xakriabá (PSOL-MG) durante a sessão promovida de madrugada pela Câmara dos Deputados resumem o desprezo e o ódio cultivado por tanta gente, reafirmaram de forma grotesca o tamanho da injúria que é por aqui reiterada há mais de 500 anos.
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Em 1980, aos 19 anos, tomei um susto ao me deparar, na capa do Caderno Especial do Jornal do Brasil, com o poema "Que país é este?", de Affonso Romano de Sant'Anna. Ele escrevera um épico emocionante, lírico, indignado e arrebatador como "O navio negreiro", de Castro Alves.
Em plena ditadura, Sant'Anna (1937-2025) compôs e publicou um libelo contra a espoliação de um país, um protesto que analisava nossas misérias, que gritava, denunciava. Um poema que, infelizmente, continua a doer:
"Uma coisa é um país,
outra um fingimento.
Uma coisa é um país,
outra um monumento.
Uma coisa é um país,
outra o aviltamento.
(...)
Há 500 anos caçamos índios e operários,
há 500 anos queimamos árvores e hereges,
há 500 anos estupramos livros e mulheres,
há 500 anos sugamos negras e aluguéis.
(...)
Há 500 anos somos pretos de alma branca,
não somos nada violentos,
quem espera sempre alcança
e quem não chora não mama
ou quem tem padrinho vivo
não morre nunca pagão.
(...)
Este é um país de síndicos em geral,
este é um país de cínicos em geral,
este é um país de civis e generais."