Por: Fernando Molica

Os desprotegidos do ministro Barroso

Apesar dos boatos de que Hugo Motta poderia pautar a Lei da Anistia, isso não aconteceu. E usou um argumento forte para não pautar: ministro Luis Roberto Barroso, do STF, disse que anistia só será válida para quem já tiver sido julgado. | Foto: Antonio Augusto/STF

Luís Roberto Barroso tem o direito de achar que a legislação trabalhista desprotege o trabalhador,  pode até relativizar a desproteção de motoristas e entregadores de aplicativos, mas ele e colegas do Supremo Tribunal Federal não poderiam usar seus poderes para, na prática, mudar a lei.

Não se trata apenas de alterar relações de trabalho, de autorizar quebras de direitos em nome de uma suposta modernização. O drible na lei compromete não apenas o trabalhador, mas estruturas mais amplas e complexas, como o FGTS e a Previdência Social.

Os sucessivos bombardeios à CLT e sua progressiva substituição por outras formas de contratação minam ainda mais a capacidade de o Estado honrar o pagamento de aposentadorias e pensões, reforçam a quebra de uma estrutura que garante a sobrevivência de dezenas de milhões de brasileiros.

Mantido o ritmo de destruição do emprego formal, em breve ganharão força vozes que pedem uma nova reforma previdenciária que, como as anteriores, castigará trabalhadores e preservará entidades dispensadas da contribuição, militares, magistrados e procuradores: para esses grupos, a proteção nunca é excessiva. 

Como ressaltam os procuradores do Trabalho Cássio Casagrande e Rodrigo Carelli, o STF tem feito uma complicadíssima confusão entre terceirização — autorizada pela reforma trabalhista de Michel Temer — e pejotização. A diferença é bem simples: terceirizados têm sua carteira assinada pela empresa prestadora de serviços, o que não ocorre no caso dos contratados como pessoas jurídicas, aí incluídos os MEIs.

No livro "A Suprema Corte contra os trabalhadores", Casagrande e Carelli frisam que empresas que haviam ignorado a CLT na contratação de mão de obra têm protocolado reclamações no STF para assim buscarem descartar resultados de processos analisados pela Justiça do Trabalho.

De um modo geral, misturam conceitos de terceirização e pejotização e, com frequência, saem vitoriosas do STF. Isso transforma a contratação via CLT como uma espécie de opção de patrões retrógados e de empregados "idiotas" — para usar a palavra escolhida pelo presidente da Federação das Indústrias de Minas Gerais, Flávio Roscoe.

Em abril, o ministro Gilmar Mendes suspendeu todos os processos trabalhistas que tratavam de pejotizações irregulares; semana passada, convocou uma audiência pública sobre o tema, que provavelmente será realizada em setembro. A conversa será sobre o direito de se descumprir a legislação — com autorização judicial.

Há alguns anos virou recorrente criticar a legislação trabalhista brasileira com base no que ocorre no processo de contratação de mão de obra nos Estados Unidos. Discussões são sempre importantes, mas não dá para discutir um aspecto sem levar em conta todas as características de uma sociedade. 

Os EUA que têm mecanismos muito mais simples de contratação e dispensa de trabalhadores são o mesmo país que gastam com a Justiça apenas 0,14% de seu PIB, percentual que, por aqui, chega a 1,6%. Estudo do Tesouro Nacional mostrou que a média nos países desenvolvidos é de 0,3%. No Brasil, da grana destinada ao Judiciário, 84% vão para pagamento de salários e aposentadorias. 

Na mesma entrevista à Folha de S.Paulo, Barroso falou da necessidade de entregadores e motoristas de aplicativos receberem proteções sociais "mas um pouco diferentes da concepção tradicional". Seria importante definir que mecanismos seriam esses.

O modelo atual é bem simples: os caras compram ou alugam seus veículos, pagam o combustível, ralam horas e horas por dia e recebem muito pouco. Usar esses trabalhadores como exemplos de modernidade é uma forma de dourar um discurso que, na prática, recupera a memória de um país construído com base no trabalho escravo.