Por: POR FERNANDO MOLICA

Lula recupera o espírito de João Ferrador

João Ferrador, personagem que marcou a luta de metalúrgicos | Foto: Reprodução

Desde o filme de campanha de Dilma Rousseff em que a também candidata Marina Silva era acusada de, com de suas propostas, tirar comida da mesa das famílias, que o PT não jogava tão pesado. Tocada em várias frentes, a blitz contra a resistência do Congresso Nacional ao governo mostra que o jogo agora é outro.

É como se Lula ressuscitasse o João Ferrador, personagem de história em quadrinhos criado, no início dos anos 1970, pelo jornalista Felix Nunes, da Tribuna Metalúrgica, jornal do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo. Sempre de boné e macacão, com frequência irritado, Ferrador tinha como mote a frase "Hoje eu não tou bom!".

Conciliador desde os tempos de sindicalista, o presidente parece ter percebido que a batalha contra o Congresso foi perdida — as tradicionais concessões feitas em mandatos anteriores não são mais suficientes para garantir alguma governabilidade. Acuado, trocou o Lulinha Paz e Amor pelo espírito de João Ferrador. Na mudança, não vacilou em usar estratégias inspiradas nas utilizadas pelo seu principal antagonista.

Em 2018, o bolsonarismo deixou atordoada a esquerda que ainda acreditava num modelo tradicional de campanha eleitoral, focada em alianças partidárias, na divulgação de dossiês e em ataques contra os adversários baseados em denúncias publicadas na imprensa e mensagens de esperança.

Alinhada com um movimento que já manifestava em diversos países, a extrema direita brasileira mandou às favas qualquer tipo de comedimento, usou de maneira profissional e competente as redes sociais para espalhar não apenas acusações, mas mentiras deslavadas.

Jair Bolsonaro não vacilou ao, no Jornal Nacional, distorcer o conteúdo de um livro voltado para o público infantojuvenil: não valia mais o escrito, mas o que era falado, o conteúdo que boa parte do eleitorado queria escutar. Acusações falsas, sempre presentes em campanhas, ganharam, com as redes sociais, uma dimensão industrial, avassaladora.

Bolsonaristas entenderam a lógica das fake news — o importante era fornecer sangue a cidadãos dispostos a acreditar em qualquer tipo de acusação ao inimigo. As notícias fraudulentas atuam na lógica religiosa, em que a fé substitui qualquer necessidade de comprovação.

Irritadas com a crise econômica, revoltadas com as notícias de corrupção propagadas pela Lava Jato, milhões de pessoas queriam vingança, tinham prazer em odiar. Daí o fervor com que eram recebidas tantas mentiras. Pouco adiantavam desmentidos e o trabalho de agências de checagem. Bolsonaristas acreditam num complô da esquerda mundial, algo que incluía comunistas, banqueiros, ecologistas, jornalistas, todos, eles sim, envolvidos na missão de enganar. Os desmentidos, portanto, seriam produzidos por esse mesmo suposto consórcio, e não deveriam ser levados em conta.

A máquina do ódio e da desinformação fez horas extras na pandemia — exaltou a cloroquina, desacreditou as vacinas e as medidas de isolamento social, classificou de falso o sofrimento de doentes, questionou a veracidade de imagens de covas abertas às pressas e lado a lado nos cemitérios. Muita gente morreu em consequência desse tipo de terraplanismo.

Sem outra saída, com popularidade em queda, preocupado com a migração de aliados na direção da provável candidatura à Presidência do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, o governo jogou o time no ataque e recuperou bandeiras tradicionais do PT e da esquerda.

O jeito João Ferrador voltou ainda mais agressivo, passou a ser incorporado em vídeos que, apesar do DNA em comum, são assinados por diferentes autores: os mais leves, pelo governo; os mais agressivos, pelo PT; os que chutam o balde, como os que chamam o presidente da Câmara, Hugo Motta, de Hugo Nem Se Importa, têm como pais entidades de origem nebulosa. O governo jogou o time pro ataque, corre o risco de tomar bola nas costas, mas não quer morrer calado.