Por: Fernando Molica

Governar é definir origem e destino de verbas

Ministro da Fazenda, Fernando Haddad ressalta que sistema tributário favorece os mais ricos | Foto: Lula Marques/Agência Brasil

A reação petista à crise com o Congresso reabre a possibilidade de o país voltar a discutir política além do rame-rame da guerra de torcidas. Governar é estabelecer prioridades relacionadas a verbas públicas, sua arrecadação e aplicação — o resto funciona como aqueles adereços de mão usados em alas de escolas de samba, servem apenas para criar efeitos visuais.

Ao tirar a poeira da briga entre interesses de mais pobres e os dos mais ricos, o governo, ainda que de maneira improvisada, ameaça reabilitar o sentido da política num país em que, historicamente, recursos públicos sempre foram apropriados por setores privilegiados.

Trata-se de uma conversa que ajuda a demolir até mesmo arautos do liberalismo que tanto pregam o Estado mínimo; na prática, advogam que isso ocorra apenas para os outros.

Nosso sistema de arrecadação de impostos que prioriza o consumo, e não a renda. O mecanismo joga pra escanteio o princípio básico de que, numa sociedade, ricos pagam mais impostos do que pobres, o que se dá, principalmente, pela taxação de renda; quem ganha mais, paga mais. A lógica de tributar o consumo pune o pobre, que paga por uma caneta Bic ou por um computador os mesmos impostos que os cobrados dos tais moradores da cobertura.

O sistema brasileiro consegue dar a cambalhota de privilegiar quem já tem mais: o pesado desconto na fonte é feito sobre o salário de quem é empregado, mas alivia o patrão, que costuma ter nos dividendos de suas empresas a maior fonte de renda — e estes valores não são tributados.

O mecanismo permite aos que pagam planos de saúde ou consultas médicas abaterem esses custos de seu imposto de renda: o sujeito que limpa o banheiro da clínica ou do hospital contribui, com seus impostos, para pagar as despesas de quem utiliza os serviços desses estabelecimentos.

Grandes hospitais e universidades particulares pertencentes a entidades sem fins lucrativos — geralmente ligados a entidades religiosas ou beneficentes — não precisam recolher ao INSS os 20% referentes à suas folhas de pagamento. Mas seus funcionários se aposentarão normalmente - os demais contribuintes, pessoas físicas ou jurídicas, é que vão bancar seus rendimentos.

Mas nem todas as empresas contribuem, já que o Congresso renovou a chamada desoneração de 17 setores, um nome de viés positivo que traduz a isenção de boa parte do que esse grupo deveria pagar à Previdência. No ano passado, isso onerou em R$ 19 bilhões o resto da população: o valor que representa quase a metade do que o governo pretende arrecadar, em 2025, com o aumento do IOF.

No total, este ano as isenções fiscais, chamados gastos tributários, deverão custar R$ 500 bilhões, meio trilhão de reais. Entre os grandes beneficiados estão optantes pelo Simples, empresas sediadas na Zona Franca de Manaus, produtoras de eventos, o agronegócio (só para registrar, a Lei de Incentivo à Cultura, conhecida como Lei Rouanet, representa 0,6% desse valor).

É lícito que a sociedade decida incentivar este ou aquele setor, que resolva, por exemplo, diminuir ou mesmo zerar impostos de alimentos básicos e de medicamentos, mas essa discussão precisa ser feita às claras e com honestidade. Na prática, ganha quem tem mais poder e lobby, as exceções incluídas na reforma tributária aprovada pelo Congresso reafirmam isso: haverá subsídio até para plano de saúde de pets. Integrantes de 18 categorias profissionais pagarão menos impostos na prestação de serviços. Assim, engenheiros e arquitetos pagarão um percentual menor que mestre de obras e pedreiros.

É difícil prever se o governo vai mesmo bancar o discurso de estabelecimento de um mínimo de justiça tributária, Lula sempre passou longe dessa briga. Agora, a situação é outra: com muito menos dinheiro no cofre, emparedado pelo Congresso e com olhos em 2026, sabe que precisa jogar mais pesado, deixar de lado os adereços de mão e se concentrar em quesitos como bateria, evolução e harmonia — decisivos na disputa.