"Ontem comemos mal. E hoje pior" — o soco em forma de frases está em "Quarto de despejo: diário de uma favelada", principal livro de Carolina Maria de Jesus (1914-1977). A escritora será enredo da Unidos da Tijuca no próximo Carnaval.
Capital Mundial do Livro até abril de 2026, o Rio precisa aproveitar a excelente decisão da escola de samba — os livros da homenageada têm que chegar também às escolas da rede de ensino, é fundamental que sejam lidos e debatidos por crianças e jovens, entre eles, muitos que vivenciam realidades semelhantes àquelas descritas nas páginas.
A vida da escritora foi contada em detalhes no livro "Carolina: uma biografia" (Malê), de Tom Farias. Mineira, negra, migrou para São Paulo em 1937, trabalhou como empregada doméstica e catadora, foi moradora da favela do Canindé. Foi lá que ela, apaixonada pela leitura, começou a escrever seu livro, publicado em 1960 com a ajuda do jornalista Audálio Dantas e que se transformaria num marco da literatura brasileira.
A narração do cotidiano da miséria vivenciada por Carolina continua a ser impactante num país que faz questão de manter e cultivar a exclusão. Escrito em primeira pessoa, "Quarto de despejo" vai além da constatação de mazelas. Leitora ávida, a autora soube dar tratamento literário ao texto, escrever de maneira a criar impacto, sabia muito bem o que queria dizer.
Em seu livro mais conhecido estão frases como "É preciso conhecer a fome para saber descrevê-la", "Quem passa fome aprende a pensar no próximo, e nas crianças", "Como é horrível ver um filho comer e perguntar: 'Tem mais?'"; "Duro é o pão que comemos. Dura é a cama que dormimos. Dura é a vida do favelado."
Carolina não se esquivou de fazer reflexões a partir de sua vivência. Tratou de política, carestia, racismo, expectivas de vida: "Um sapateiro perguntou-me se o meu livro é comunista. Respondi que é realista", "O guarda civil é branco. E há certos brancos que transforma preto em bode expiatório", "A fome também é professora", "A tontura da fome é pior que a do álcool."
A fome é tema central, permeia toda a narrativa, está sempre presente, surge em quase infinitas manifestações: "Como é horrível levantar de manhã e não ter nada para comer", "Fiz café para o João e o José Carlos, que hoje completa 10 anos. E eu apenas posso dar-lhe os parabéns, porque hoje nem sei se vamos comer".
De tão forte, a obra de Carolina tem tudo para gerar interesse mesmo de alunos que demonstram aversão à leitura. Ninguém consegue ficar indiferente a uma história contada com tanta força e que dialoga de maneira tão direta com a nossa realidade. Seu jeito de escrever, à margem da gramática normativa, também permite ótimos debates sobre a forma com que cada um se expressa.
A exemplo do que fizeram e fazem tantas outras escolas de samba, a Tijuca levantou um grande tema, é preciso não deixar essa bola cair. Espalhar a obra de Carolina Maria de Jesus é uma maneira de renovar compromissos com a literatura, com a vida, com a justiça; um jeito de reafirmar outra de suas grandes frases: "O livro é a melhor invenção do homem".