Por: Fernando Molica

Zema pode até elogiar, mas não negar a ditadura

Governador mineiro questionou existência da ditadura | Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Pelo critério de Romeu Zema (Novo), Tiradentes pode ter se enforcado - como ele disse, tudo é questão de interpretação, afinal.

Como não é historiador — também fez questão de ressaltar este ponto em entrevista à Folha de S.Paulo —, o governador de Minas Gerais deve achar razoável a versão da ditadura de que o jornalista Vladimir Herzog se suicidou ao se enforcar: vai que Joaquim José da Silva Xavier fez o mesmo? Nunca se sabe, né?

Zema tem o direito de defender a ditadura, mas não de negá-la. Pode ter saudades dos militares que deixaram o  Brasil com inflação de 215%, taxa de analfabetismo de 25%, mortalidade infantil de 76 por mil nascidos (hoje é de 12,5 por mil), expectativa de vida de 62,5 anos (hoje é de 76,4 anos), 434 mortos e desparecidos e 20 mil torturados.

Mas o governador não pode brigar com os fatos. Como ressaltou Rogério Sottili, diretor-executivo do Instituto Vladimir Herzog, na ditadura, Zema não teria como ser eleito pelo voto direto para governar seu estado. 

Não se trata de interpretação: em 1964, militares associados a lideranças civis, derrubaram o presidente constitucional e, a partir daí, cassaram mandatos de políticos, impediram eleições diretas para presidente, governadores e prefeitos de capitais, sequestraram, torturaram e mataram brasileiros.

Não é incomum que cidadãos defendam ditaduras e, consequentemente, atitudes como dar choques elétricos, estuprar prisioneiras, arrancar unhas de adversários e submetê-los a sessões intermináveis de outras formas de agressão. De um modo geral, esses regimes autoritários só se impõem quando apoiados por lideranças civis: empresários, colegas de profissão de Zema, tiveram um papel decisivo no financiamento da máquina repressiva implantada pelos militares, financiaram a Oban, Operações Bandeirantes. 

Entre eles estava o dinarmarquês naturalizado brasileiro Henning Albert Boilesen, que não se limitava a bulir com granadeiros gostava até de assistir sessões de tortura, acabaria assassinado por grupos de esquerda. A julgar por seus elogios, feitos na mesma entrevista, ao governo de El Salvador, o governador mineiro deve apreciar prisões ilegais, tortura, desrespeito sistemático aos direitos humanos. A velha história de fins que justificam meios — desde que estes vitimem apenas os outros.  

Na entrevista, ele relativizou a ditadura ao justificar a intenção de que, caso seja eleito presidente da República, indultar o aliado Jair Bolsonaro: "Não foram concedidos indultos a assassinos e sequestradores aqui, durante o que eles chamam de ditadura? Agora você não vai conceder?"

Por partes, governador. A anistia — e não indulto — foi concedida para marcar o início do fim da ditadura que, a partir de 1964, tomou a iniciativa de assassinar e de fazer detenções ilegais, na prática, sequestros. As torturas começaram naquele mesmo ano.

Foi depois da implantação da ditadura e da redução dos espaços legais de oposição que setores da esquerda empreenderam projetos de guerrilha com o objetivo de derrubar o regime e de implantar o socialismo pela via revolucionária. A iniciativa incluiu assaltos a bancos para arrecadação de fundos e sequestros de diplomatas com o objetivo de libertar prisioneiros políticos que estavam sendo torturados — entre essas ações, houve a que deixaram mortos.

A tentativa de guerrilha foi um erro histórico, incluiu atos irresponsáveis como o que matou o soldado Mário Kozel Filho em São Paulo. Mas ocorreu em resposta a um movimento anterior, de repressão a movimentos pacíficos de oposição e de assassinato de militantes políticos — a resistência ao nazifascismo também incluiu atos passíveis de serem chamados de terroristas. A anistia concedida em 1979 também beneficiou torturadores e assassinos que agiram financiados pelo Estado e pelo empresariado.

Negar uma ditadura abrir é caminho para novos regimes autoritários. Como homem branco, rico, herdeiro de um grupo empresarial, Zema tem bons motivos para achar que jamais será alvo do arbítrio. Mas mesmo sem ser historiador, ele deve saber o que aconteceu com judeus ricos que se achavam imunes ao nazismo, com lideranças soviéticas que acabariam perseguidas em seu país,  com brasileiros que apoiaram o golpe e depois foram vítimas dos militares, caso de seu conterrâneo Juscelino Kubitschek. Ditaduras são incontroláveis, ninguém precisa ser historiador para saber disso.