O programa para facilitar a compra de motocicletas por entregadores autônomos é o reconhecimento, pelo governo, de sua incapacidade de propor soluções que superem os desafios do novo mercado de trabalho.
Sem saber o que fazer para recuperar a popularidade e com dificuldades para dialogar com novas gerações de trabalhadores, o Planalto, com a proposta, estimula um tipo de subemprego que potencializa a exploração de mão de obra e mata muitos jovens, em geral, pretos e pobres. Dá até pra chamar o programa de Minha Moto, Minha Morte.
Segundo a Secretaria Municipal de Saúde do Rio, dos acidentes de trânsito ocorridos entre janeiro de 2023 e abril de 2025, 69% envolviam motociclistas. Os atendimentos a vítimas nesses casos subiram 185% nos primeiros quatro meses deste ano em relação ao que ocorreu no mesmo período de 2023.
Ao classificar de genocídio o que está ocorrendo no trânsito, o prefeito carioca, Eduardo Paes (PSD), anunciou medidas para tentar reduzir os acidentes com motocicletas mas, pressionado por entregadores, voltou atrás.
Aliadas à tradicional baixa remuneração dos assalariados no país, as mudanças no trabalho e na legislação fizeram com que muita gente abandonasse o sonho da carteira assinada, símbolo de uma integração à vida institucional que marcou gerações de brasileiros.
Desidratada pelas reformas implantadas no governo de Michel Temer (2016-2018) e atropelada por sucessivas e pra lá de questionáveis decisões do Supremo Tribunal Federal, a CLT, Consolidação das Leis do Trabalho, passou a ser encarada como símbolo de conformismo e de perpetuação da pobreza.
Alimentada por muitas igrejas evangélicas e pelos chamados influenciadores, uma visão quase religiosa do empreendedorismo foi colocada no altar das aspirações de milhões de brasileiros que se cansaram das nunca realizadas promessas de ascensão social.
A universidade deixou de ser privilégio dos mais ricos, mas o caminho que leva ao ensino superior ainda é árduo, excludente e exige um investimento de muitos anos em carreiras que nem sempre garantem um bom padrão de vida.
Quem precisa ganhar dinheiro tem pressa — estimulada pela pandemia, a demanda por entregas surgiu como uma alternativa para milhões de jovens até então condenados ao desemprego ou a vagas mal remuneradas no regime de 6 X 1, um tipo de emprego que não oferece qualquer ilusão de prosperidade.
À fome por rendimentos juntou-se uma ilimitada e insaciável vontade de comer de empresas criadas a partir do desenvolvimento de aplicativos. Um tipo de investimento de fazer inveja aos capitalistas clássicos do século XX e até mesmo aos proprietários das fábricas onde foi tecida a revolução industrial.
Os novos negócios não têm vínculos com os entregadores, que, ainda por cima, têm que bancar os meios que permitam o exercício da atividade. Eles é que compram motos ou bicicletas, seus instrumentos de trabalho.
A ideia de jornada limitada de trabalho e de pagamento de horas extras foi para o espaço virtual. Não é mais o patrão que determina o tempo do serviço, são os trabalhadores que tratam de esticar a ralação para que consigam faturar alguma grana.
Questionado pela Justiça do Trabalho, mas amparado pelo espírito intervencionista do STF, o modelo joga nas costas dos trabalhadores e do Estado todos os problemas decorrentes da precarização: é à rede pública de saúde que eles recorrem quando são acidentados.
A falta de contribuições previdenciárias vai enfraquecer ainda mais os cofres de um sistema de aposentadorias que, graças a governos e parlamentares, abre mão de contribuições de grandes empresários e também de universidades e hospitais privados que se apresentam como beneficentes.
Os entregadores de hoje serão os futuros dependentes do BPC, Benefício de Prestação Continuada. Os que, claro, sobreviverem a uma atividade tão arriscada e que passará a ser estimulada pelo governo.