A acusação de apologia ao crime usada para prender o MC Poze do Rodo seria capaz de ter levado muitos criadores para a cadeia; escritores, em particular. O ex-comissário de polícia Rubem Fonseca (1925-2020) seria um deles:
. "Atirei bem no meio do peito dele, esvaziando os dois canos, aquele tremendo trovão. O impacto jogou o cara com força contra a parede. Ele foi escorregando lentamente e ficou sentado no chão";
. "Levantei alto o facão, seguro nas duas mãos; vi as estrelas no céu, a noite imensa, o firmamento infinito e desci o facão, estrela de aço, com toda minha força, bem no meio do pescoço dele".
Os trechos são dos contos "Feliz Ano Novo" e "O cobrador", dos mais conhecidos do grande escritor. Neles, a exemplo do que fizeram e fazem tantos colegas, Fonseca assumiu o ponto de vista dos seus personagens, assassinos e assaltantes.
Diferentemente do que ocorre no jornalismo, a ficção não tem compromisso com o que é considerado certo: pode relativizar o que é tido como errado.
A boa literatura é o oposto de um manual de boas maneiras, não procura apresentar respostas — tem a ver com a capacidade de gerar e apresentar conflitos e questionamentos, busca ao menos tatear as diferentes razões humanas, inclusive as que motivam os piores crimes.
Daí que, de um modo geral, personagens erráticos e conflituosos são muito mais interessantes do que os de bom comportamento (é só compararmos Odete Roitman com Raquel Acioly). Isso é fundamental até para ampliarmos nossa capacidade de entendimento do outro e de suas razões, por mais absurdas que sejam — compreender não é absolver ou perdoar.
É complicado e temerário falar em função das artes, mas dá para arriscar dizer que ao mostrar motivações de quem é considerado diferente e, mesmo, desprezível, a literatura — ou a música, ou o teatro — desmonta preconceitos e certezas, mostra que a vida é sempre mais complexa.
Nos tais contos, Fonseca alerta o leitor, revela como fatos incorporados a uma certa normalidade — a exuberância de uma festa de réveillon, a posse de um carrão importado — podem ser agressivos para quem vive na miséria (o protagonista de "O cobrador" é alguém que vai em busca de tudo aquilo que lhe fora negado).
Zé Rubem, como era chamado pelos amigos, chegou a ter seu "Feliz Ano Novo" censurado pela ditadura. Mas não foi preso, ninguém ousou dizer que, com seu livro, ele fazia apologia a quadrilhas que invadiam casas e assassinavam proprietários e seus convidados. O fato de ser ex-policial, branco, escritor reconhecido, morador do Leblon e ex-diretor da Light também deve ter contribuído para deixá-lo livre.
Fonseca escreveu: "(...) tenho a Magnum com silenciador, um Colt Cobra 38, duas navalhas, uma carabina 12, um Taurus 38 capenga, um punhal e um facão". Numa de suas músicas, Poze canta: "Nós tem Glock, tem AK, 62 com mira laser." Os trechos são bem parecidos, né?
É inegável que letras do MC exaltam uma determinada facção criminosa, elogiam a destreza de bandidos. Mas se damos a Rubem Fonseca e a tantos outros criadores o direito de não os confundirmos com seus personagens, por que o mesmo princípio não é aplicado a funkeiros que abordam fatos comuns em favelas e periferias? Por que Poze do Rodo não pode usar a primeira pessoa em suas letras? O fato de ele ter a mesma cor (preta) e a mesma origem social de seus personagens (todos pobres) impede uma separação entre autor e obra?
A polícia diz ter elementos que indicam a associaçao de Poze do Rodo com traficantes, o MC também é suspeito de ter torturado seu ex-empresário. São acusações graves, que, se confirmadas, justificariam sua prisão e condenação. Mas aí a história seria outra, o complicado é o Estado definir quem pode ou não pode fazer ficção e, assim, caracterizar mais um privilégio de classe numa sociedade já tão desigual.