Uma olhada em letras de músicas do MC Poze do Rodo, preso ontem no Rio, até justifica a acusação de apologia ao crime, mas seus versos, mais que tudo, revelam o buraco em que nos metemos. Ressaltam uma naturalização da vida bandida, lugar de refúgio e de ataque de tantos e tantos jovens.
A eventual condenação de Poze não acabará com uma questão que vai muito além dele. Seus funks — duros, violentos, agressivos, com louvações a uma organização criminosa — fazem sentido para muita gente, adolescentes que se identificam com a vida que ele narra.
Não dá pra querer que pessoas nascidas e criadas em favelas e periferias tão violentas façam canções sobre barquinhos, cantinhos, violão, sol, sal e sul. O nome artístico do MC — batizado como Marlon Brandon Coelho Couto Silva — faz referência à sua comunidade de origem, a favela do Rodo, em Santa Cruz, Zona Oeste do Rio.
Letras de Poze que tendem a ser usadas como provas contra ele deveriam servir também como um guia para a compreensão de nosso país. Aos 26 anos, ele não é um ET, um alienígena que, em determinado momento, saltou de um disco voador no Rio e decidiu fazer e interpretar canções que exaltam traficantes, armas, disputas territoriais e rivalidades.
São como manifestos que homenageiam os "soldado preparado, os menor descontrolado": os erros do seu português ruim não são detalhes, mas gigantescas exclamações. Seu canto, é preciso admitir, representa frustrações, anseios, ódios e visões de mundo de muita gente — e isso não significa concordar com suas pregações.
Não se trata de defendê-lo, cabe à polícia investigá-lo e, à Justiça, avaliar sua inocência ou culpa. Mas seria uma burrice — mais uma — não perceber que suas músicas ajudam a entender uma sociedade construída na base do racismo, da discriminação, da desigualdade de renda e de oportunidades.
A popularidade de Poze do Rodo — ele tem 15 milhões de seguidores no Instagram — é sintoma do descompasso de um país que insiste em viver numa espécie de ficção: há os que querem manter tudo como está, os que advogam uma redistribuição de riquezas lenta, segura e gradual e os que creem na salvação e prosperidade divinas.
As letras de Poze traduzem impasses de grande parte de nossa juventude, adolescentes que parecem convencidos da inutilidade dos caminhos formais que historicamente lhes são oferecidos, pequenas e esburacadas trilhas materializadas em escolas precárias, preconceito, baixos salários, falta de oportunidades e exaltação de uma suposta meritocracia.
Eles sabem que no fim dessas ruelas haverá destinos pouco atraentes, como o balcão de uma farmácia em escala 6 X 1 ou a moto para entrega de comida. São brasileiros que se reconhecem em funks limitados até geograficamente, quase sempre relatam os horizontes restritos de favelas.
Para alívio geral da nação, a imensa maioria dos que consomem as criações de Poze do Rodo não pratica nada do que é narrado nas letras. Mas são pessoas que nelas reconhecem um cotidiano de quem vive em áreas dominadas pelo grupo A ou pelo B. Que são obrigadas a adotar até nas roupas um código cromático compatível com a simbologia das organizações criminosas — um domínio que só existe graças à parceria de agentes do Estado.
Em seus funks, Poze volta e meia dá protagonismo a garotos — "os menor" —, guris que, nas músicas, acabam seduzidos pelo atalho da vida criminosa: condenados desde o nascimento ao fundo do palco ou à limpeza de banheiros e coxias dos teatros, sabem, para citar Chico Buarque, que só haveria um jeito de chegarem lá, na frente do palco.
Por mais torto que seja, o grito de Poze do Rodo precisa ser ouvido, nos ajuda a entender as consequências de uma exclusão cultivada ao longo de 500 anos. Como naquela história em que oficiais nazistas, diante de "Guernica", perguntaram ao autor, Pablo Picasso, se ele é que tinha feito o quadro que retratava o massacre de uma cidade durante a Guerra Civil espanhola: "Não, foram vocês", respondeu.