Por: Fernando Molica

Os amigos ursos dos aposentados do INSS

De acordo com o INSS, foram restituídos R$ 2,34 bilhões, dos R$ 3,3 bilhões liberados | Foto: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil

A roubalheira no INSS atravessou tantos anos e governos porque, diferentemente de representantes de tantos setores poderosos, aposentados não têm amigos. O cardiologista Adib Jatene (1929-2014), que chegaria a ministro da Saúde, matou a charada ao dizer que a maior dificuldade do pobres não era ser pobre, mas não ter amigos: amigos que tenham poder ou acesso a governos.

Faz parte da democracia a existência de grupos que defendam interesses desse ou daquele setor — o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a União Democrática Ruralista (UDR) são entidades que cumprem seu papel de propagar determinadas causas (no caso específico, quase sempre divergentes).

Sindicatos e demais entidades de classe, empresas, quilombolas, indígenas, professores, militares, vítimas de tragédias como enchetes ou rompimento de barragens, grupos pró e contra legalização do aborto têm espaço numa sociedade diversa. Um dos problemas, porém, é que nem sempre existe um mínimo de paridade de forças para que o conflito de propostas seja relativamente equilibrado.

A reforma da CLT executada por Michel Temer desequilibrou o jogo nas relações trabalhistas. O modelo do imposto sindical estava caduco, dava margem para sindicatos de fachada, estimulava o peleguismo — mas era a principal fonte de renda de entidades corretas, que lutavam por suas categorias.

O fim abrupto da contribuição demonstrou a dificuldade de mobilização de tantas organizações sindicais, refletiu um momento histórico em que a esquerda estava mais por baixo que imigrante ilegal nos Estados Unidos e mostrou quem eram os amigos convidados a cruzar a ponte para o futuro alardeada pelo então presidente.

Medida semelhante jamais teria sido implantada, daquele jeito e com tamanha voracidade, caso os atingidos fossem outros, representantes dos incontáveis lobbies empresariais que infestam Brasília. Paulo Guedes, ex-ministro da Economia, e Fernando Haddad, ministro da Fazenda, concordam que há um excesso de incentivos fiscais no Brasil, aquele dinheirão que deixa de ser pago em impostos. E daí? Esses privilégios são imexíveis.

Nem mesmo a reforma tributária escapou dos amigos do poder. Os favores concedidos ao longo dos anos foram todos devidamente mantidos e, outros, ampliados. Tutores de pets conseguiram o direito de jogar para a conta da população em geral parte do custo dos planos de saúde de seus cachorrrinhos, integrantes de 18 categorias profissionais vão pagar menos impostos (grana que, claro, será compensada pelos demais brasileiros e brasileiras).

Foi assim, na base do lobby, que o jabutizão que favorece as poluidoras usinas a carvão foi parar no meio de projeto que tratava de gerão de energia eólica; a conta, de R$ 5 bilhões anuais, será rachada por todos nós.

Como a coluna Correio Bastidores mostrou no dia 2, parlamentares de diversos partidos se uniram para escantear a exigência de renovação anual de autorizações para que entidades ficassem com parte de aposentadorias. Há anos que segurados do INSS reclamavam dos descontos ilegais, muitos recorreram à Justiça, e nada aconteceu.

Aposentado, por definição, não pode fazer greve, não tem poder econômico. A idade dos integrantes da, digamos, categoria profissional também não favorece grandes mobilizações. Deu no que deu. O governo Jair Bolsonaro — que propusera a revalidação das supostas autorizações — aceitou as mudanças em sua medida provisória, fez convênios com sete novas entidades que desviariam recursos dos velhinhos e ainda acabou com qualquer exigência de controle.

De volta ao Planalto, Lula e aliados também não deram bola para o escândalo. O negócio só estourou depois da publicação de reportagens. Agora, todo mundo é amigo dos aposentados, que, a exemplo do velho samba composto por Henrique Gonçalez e gravado por Moreira da Silva, têm todo o direito de dizer: "Amigo urso, saudação polar".