Ao escolher o compositor, pintor e figurinista Heitor dos Prazeres (1898-1966) para seu enredo, a Vila Isabel tomou uma atitude que vai além das artes, que levanta uma questão política ampla, relacionada ao papel do negro na sociedade brasileira.
Trata-se de um artista que se impôs num universo em que o preconceito era ainda maior. Era ogã — tocador de atabaque — em terreiros de candomblé, participou da fundação de escolas de samba (entre elas, Mangueira e Portela), teve obras selecionadas para duas edições da Bienal de Arte de São Paulo.
Criador da expressão "Pequena África" para se referir à região da Praça 11, onde nasceu, Heitor fez política com seu trabalho, com sua produção que hoje seria chamada de multimídia. O lançamento do enredo, na Pedra do Sal, foi um ato de afirmação, de demonstração de posse artística e espiritual de povos tão relevantes para o Rio.
A carreira de pintor, iniciada tardiamente, acabou por deixar em segundo plano sua atuação como compositor, e olha que ele é autor de clássicos como "Pierrô apaixonado" (com Noel Rosa), "Lá em Mangueira (com Herivelto Martins), "Cantar para não chorar" (com Paulo da Portela — quem não conhece deve procurar a gravação de Monarco com a Velha Guarda da Portela).
Em 2023, uma exposição no CCBB reafirmou o talento do Heitor como pintor, um artista que levou para as telas protagonistas negros altivos, que vestiam roupas coloridas, que trabalhavam, brincavam, dançavam, cantavam e cultuavam orixás.
Na época, aqui neste mesmo espaço, escrevi que Heitor cumpriu um papel semelhante ao do francês Jean-Baptiste Debret ao nos revelar uma cidade. Mas um olhar de dentro, parceiro dos personagens que levava para as telas da mesma forma que os transportara para a música. Seu ateliê ficava na Praça 11, com vista para o Morro da Providência.
Os carnavalescos Gabriel Haddad e Leonardo Bora têm em mãos um ótimo e único desafio, o de escolher, na extensa produção plástica de Heitor, os elementos que transformarão em fantasias e em alegorias. Não haveria alas suficientes para receber tantos figurinos: o homenageado também foi designer de moda, desenhou peças belíssimas para teatro.
Viciados que estamos em relacionar política a acordos espúrios, fraudes, emendas parlamentares, concessões para este ou aquele setor, volta e meia nos esquecemos do papel central desse tipo de atividade. Política é a maneira pela qual sociedades buscam resolver questões, encaminham propostas, definem seus rumos.
Heitor dos Prazeres traduziu o que havia de melhor das expectativas de milhões de brasileiros que integravam o contingente de recém-saídos da escravidão. Gente que precisava redefinir seu papel num universo hostil, que lhe virava a cara.
O artista fez essa gente brilhar, sorrir, marcar presença, ocupar o centro da telas, um território simbólico. São pessoas que, no Carnaval, dirão ainda mais forte que têm direito ao protagonismo pintado por Heitor.