O suposto incidente diplomático protagonizado na China pela socióloga Rosângela Lula da Silva, a Janja, mulher do presidente Lula, ressalta a desimportância e arcaísmo dessa história de primeira-dama. Ser casada(o) com ocupante de cargo executivo não transforma ninguém em autoridade.
Vale até apelar para um chavão futebolístico: primeira-dama (argh!) ou primeiro-cavalheiro (argh!) tem que ser como um bom juiz de futebol. Participa do espetáculo, posa pra foto, entra em campo: e sequer é notado durante o jogo.
A ascensão de mulheres ao poder já deveria ter contribuído pra acabar de vez com essa história de um governante ter que carregar a companheira pelo mundo afora. Dilma Rousseff não era casada quando exerceu a Presidência, e ninguém sentiu falta da existência de um homem que a acompanhasse em eventos.
A lógica da existência de primeiras-damas é fundamentalmente machista. O cargo que não é cargo carrega a ideia de uma companhia que não entende nada do complexo universo da política, serve apenas de objeto decorativo e, como tal, tem que entrar muda e sair calada — e sorrir discretamente o tempo todo.
Há algumas décadas, a situação era ainda mais ridícula. Em eventos com a presença de diversos chefes de governo — todos homens, claro —, suas mulheres eram levadas para passear, visitar escolas e instituições de caridade. Exerciam funções compatíveis com a submissão imposta por um universo masculino.
É compreensível a dificuldade de encontrar um papel para companheiras(os) de presidentes e primeiros-ministros. Mesmo as que têm carreiras profissionais brilhantes, casos de Ruth Cardoso e Michelle Obama, se veem obrigadas a assumir funções secundárias, viram coadjuvantes de seus maridos. Isso, até por questões de segurança e de preservação do poder, não pode haver suspeita de que mulher de governante seja lobista.
Janja, pelo visto, tem dificuldade de ser adequar ao figurino de bonita, recatada, calada e do lar. Mas, fazer o quê?, é esse o seu papel. É normal que integrantes de um casal deem palpites na vida profissional do outro, seria estranho que isso não acontecesse também na esfera pública. Mas a mulher ou o marido do(a) diretor(a) de uma empresa não tem o direito de manifestar suas opiniões em uma reunião de trabalho do cônjuge — e, pelo jeito, foi isso que Janja fez.
Pouco importa que sua explanação sobre o TikTok tenha sido excelente e que ela tenha sido instada a se manifestar pelo presidente Lula. Não lhe cabe institucionalmente tratar de temas delicados, que envolvem interesses diversos.
Uma visita como essa à China exige muito trabalho por parte do Itamaraty, uma das mais importantes instituições brasileiras, repleta de profissionais capazes de examinar detalhes de cada situação e, depois, sugerir caminhos ao presidente.
Não deve ser nada fácil para alguém se conformar com esse papel. Mas Janja e Lula precisam entender que por mais inteligente e capaz que seja, ela, nesse tipo de evento, exerce o papel de mulher do presidente, aqui ou na China.
Diferentemente do que ocorre com ocupantes de cargos políticos, Janja não foi nomeada pelo presidente, não pode ser, portanto, demitida. E sua opinião tem, na prática, mais peso do que a da maioria dos ministros, até por desfrutar da intimidade e da confiança do chefe do Executivo.
Janja parece ter dificuldades para entender que não foi eleita, não representa qualquer parcela da opinião pública. Sim, o lugar da mulher é onde ela quiser, mas a chegada a lugares do universo político-institucional depende ou de uma nomeação ou de uma vontade coletiva expressa no voto e sintetizada num diploma emitido pela Justiça Eleitoral, não numa aliança.