A Igreja Católica, que evitava eleger um papa norte-americano para não reforçar o já imenso poder dos Estados Unidos, escolheu um ianque para — jogada de mestre — docemente se contrapor ao império encarnado por Donald Trump.
Age como se guiada pelo princípio da homeopatia, o "similia similibus curantur", o semelhante cura semelhante. No momento que o presidente norte-americano procura se impor ao mundo, ataca imigrantes e ressalta o risco representado pela China, a Igreja não cometeu o amadorismo de eleger um papa mexicano ou chinês, não partiu para um enfrentamento aberto e panfletário.
Profissional no jogo do poder, elegeu Robert Prevost, um conterrâneo de Trump, mas alguém que se tornou latino-americano e, em sua primeira mensagem, introduziu um trecho em espanhol — não em inglês.
Dias depois de a Casa Branca divulgar uma imagem de Trump fantasiado de papa, a Igreja deu seu troco: anunciou um papa — papa de verdade — nascido nos Estados Unidos, que tem raízes familiares na Itália, França e Espanha e que se naturalizou peruano. Descende de imigrantes e, certa forma, tornou-se um deles ao fazer o caminho inverso ao tradicional: foi dos EUA para o Peru.
Este ano, já respostou em sua conta no X de Elon Musk mensagens que criticavam a política norte-americana sobre imigração, uma delas voltada espeficamente para o vice de Trump, JD Vance — um católico, veja só.
Seria reducionismo atrelar a eleição de Prevost à necessidade de se gerar um contraponto ao presidente dos Estados Unidos: milenar, a Igreja trabalha com a lógica da eternidade, não com base em mandatos de quatro anos.
Mas a exemplo do que ocorreu, em 1978, com a escolha do polonês Karol Wojtya, Roma renova sua capacidade de dialogar com o mundo. João Paulo II teve papel decisivo no fim da União Soviética e de outros países socialistas; o desafio agora é outro.
Roma sabe que Trump, apesar de seu ar muitas vezes caricato, representa uma corrente de pensamento que cresce em muitos cantos do mundo; vários países europeus se veem ameaçados pela ascensão de partidos de extrema direita que fazem do imigrante o inimigo da vez.
A escolha do cardeal Prevost demonstra também, e mais uma vez, o equilíbrio dinâmico da Igreja Católica. Leão XIV nasceu nos Estados Unidos, mas é cidadão de um país latino-americano; tem compromissos progressistas e já deu declarações preconceituosas em relação a homossexuais.
Com mais de dois mil anos de experiência, a Igreja entrega ao mundo um papa ao mesmo tempo afirmativo e dúbio. Cada católico terá o direito de escolher sua própria versão para o sucessor de Francisco, a esquerda trata de ressaltar seu compromisso com os pobres; a direita respira aliviada com suas declarações retrógadas do ponto de vista moral.
Depois de dois pontificados marcados pelo conservadorismo — os de João Paulo II e de Bento XVI — e da ênfase social de Francisco, Roma exercita seu estilo favorito: não opta pelo lado de lá ou pelo de cá, joga pelos dois flancos, como convém a uma instituição que procura intermediar o reino dos Céus com a realidade da Terra. De novo, aposta na tensão entre o Pedro institucional e o Paulo pregador.
Como aqui citado na terça-feira, o papa não tem exército, comanda um Estado minúsculo, herança de uma hegemonia exercida por Roma ao longo de muitos séculos. Mas aquele sujeito de branco tem muito poder e dispõe de uma autoridade que lhe permite tratar de qualquer tema.
O novo ocupante do trono de Pedro tem um sobrenome de origem francesa, que remete a pessoas que exerciam cargos superiores, que tinham funções administrativas ou de comando, inclusive de religosos.
Segundo alguns sites, a palavra Prevost vem do latim "praepositus", aquele que está à frente. Como diria Zé Simão, o cara é mesmo predestinado. Agora, vai tratar de exercitar, em doses homeopáticas, como convém aos papas, o poder carimbado em seu registro de nascimento.