Por: Fernando Molica

A 'fadista' Nana Caymmi

Nana Caymmi chegava a lembrar a postura de cantoras de fados | Foto: Beti Niemeyer/Divulgação

A morte de Nana Caymmi marca o fim de um estilo único de interpretação. Outras grandes cantoras brasileiras — Gal Costa, Elizeth Cardoso, Elis Regina, Nara Leão, Beth Carvalho, Clara Nunes, Marisa Monte, Maria Bethânia — podem ser mais identificadas com uma determinada vertente da nossa música. Nana corria numa faixa diferente, subordinava as canções ao seu jeito de cantá-las.

Ao longo da carreira, gravou inúmeros sambas-canções e boleros, deu um novo olhar a criações do pai, Dorival Caymmi, deixou sua marca em composições de Milton Nascimento, fez uma espécie de trisal com Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Mas foi, acima de tudo, Nana Caymmi.

Ao cantar, parecia descobrir pequenas variações em cada nota, que se desdobravam de um jeito único, um tipo de afinação particular: é como se seu pentagrama não fosse composto de linhas retas, mas de curvas como as que marcam a calçada de Copacabana.

Só para ficarmos no bairro: vale comparar sua interpretação de "Sábado em Copacabana", de Dorival e Carlos Guinle, com qualquer outra, por mais brilhante que seja. Diferentemente de outros intérpretes, Nana segue o desenho das ondas eternizadas nas pedras portuguesas colocadas na orla.

A emoção que aplicava a cada música ressaltava essa característica. Por mais alegre que fosse a canção, havia, lá no fundo, um travo de dor, uma expectativa de algo que não ia dar tão certo assim. Sabe aquela incerteza que marca todos os amores, por maiores que sejam? Pois.

Nana tinha um jeito de cantar e uma postura no palco que lembram a gravidade das fadistas, como se envergasse um permanente xale preto. Sua atitude diante do microfone também remete às mulheres que, apenas com um olhar, exigem silêncio para que possam cantar o fado.

A presença de Nana cobrava uma atenção hoje incompatível com salas de espetáculos de mesas apinhadas, de espectadores menos interessados no show e mais preocupados em registrar a própria presença naqueles locais. Não é difícil imaginar o que, hoje, a desbocada Nana sugeriria que fosse feito com tantos celulares.

Construiu sua carreira de uma maneira única, em momento algum procurou se adequar a tendências do mercado, gravou o que quis, do jeito que bem entendeu. Uma postura que manteve em sua vida pessoal e em suas declarações, algumas delas supreendentes, contraditórias com uma artista comprometida com a beleza, o bom gosto, a delicadeza, a seriedade e a elegância.

Nada, porém, capaz de esmaecer o brilho da cantora ousada e original que, ao longo da vida artística, não errou o tom nem desafinou — e ainda nos revelou o que notas musicais escondiam.