A nova rodada de erros grotescos de arbitragem e a reportagem da revista piauí que trata da CBF reafirmam o que todo mundo sabe sobre os desmandos no futebol brasileiro; o problema é a dificuldade de mudar algo que foi feito para ser do jeito que é.
Entidade privada, a CBF tem, no Brasil, o monopólio do futebol, é como se houvesse uma única empresa capaz de fornecer água para todo o país. Como está claro em seu estatuto, a entidade, por ser filiada à FIFA e à Conmbebol, é a única autorizada, de forma exclusiva, a "dirigir e controlar o futebol no território brasileiro".
Ao assumir a presidência da CBF em 1989, Ricardo Teixeira tratou de acabar com o recebimento de qualquer verba pública por parte da entidade. Isso, para tentar manter a Polícia Federal, o Ministério Público e o Tribunal de Contas da União longe de sua sede.
Dona da seleção que representa o país, proprietária dos direitos sobre a prática organizada e oficial do esporte mais popular, a CBF tem jeito de estatal, exerce um monopólio de dar inveja ao maior fã da presença do Estado na economia — mas é privada.
A gastança e os absurdos relatados pela reportagem da piauí fazem parte da lógica de poder de uma entidade que não sofre qualquer tipo de concorrência. É a dona, vale repetir, do futebol no Brasil.
Ao estabelecer uma remuneração estapafúrdia e fornecer incontáveis mordomias para presidentes de federações regionais, a direção da CBF apenas trata de garantir a própria sobrevivência. Cuida muito bem daqueles que, em tese, têm o poder de derrubá-la.
Cada uma das 27 federações tem direito a, na prática, três votos na escolha da diretoria da entidade nacional. Isso supera com folga o peso dos clubes: cada um dos 20 da série A tem dois votos; os da série B, um. Como frisa a reportagem, as federações podem eleger o presidente da CBF mesmo se este não tiver um voto sequer dos 40 maiores clubes.
Uma camisa de força que explica a votação unânime dos clubes à reeleição do presidente da CBF, Ednaldo Rodrigues — ser contra só abriria margem para retaliações. A briga é tão pesada que o ex-craque Ronaldo Nazário jogou a toalha e desistiu de se candidatar ao comando da entidade.
Mesmo federações de estados onde há prática incipiente de futebol mandam mais na CBF do que clubes que pertencem à elite do futebol. O sistema foi construído para incentivar a cartolagem, o jogo de bastidores; favorece a distribuição de vantagens para pessoas que pouco ou nada têm a ver com a prática do futebol. E é muito pequena a chance de eventuais desvios gerarem problemas judiciais.
Os clubes, associativos ou SAFs, investem no futebol, são responsáveis pelo imaginário e pela fantasia geradas pelo esporte, despertam e cultivam a paixão que temos por determinadas cores e escudos. Mas são coadjuvantes no mecanismo de poder — eventualmente, parceiros de uma estrutura viciada, isso, para garantir seus interesses pessoais. Algo que fortalece um sistema fechado, cheio de brechas para a corrupção.
Há algum tempo que muitos defendem o modelo europeu de criação, por partes dos clubes, de uma liga que ficaria responsável pela organização dos campeonatos nacionais — à CBF restaria cuidar das seleções. O problema é que a estrutura vertical imposta pela Fifa impede que isso seja feito sem a anuência da CBF, não dá imitar D. Pedro I, subir num burrico e gritar independência ou morte.
De posse da capitania hereditária que lhe foi outorgada pela Fifa, a CBF deixa claro em seu estatuto que pode, "a seu exclusivo critério", "mediante decisão de sua Assembleia Geral Administrativa", admitir a existência de ligas. Ou seja, nada pode ser feito sem a anuência da entidade, que, claro, terá que ser muito bem recompensada para aceitar a diminuição de seus poderes. Não há VAR que possa ser acionado para questionar a CBF, nem mesmo aqueles que traçam tantas linhas tortas em campo.