Por: Fernando Molica

Escolas cariocas explicitam suas origens

Torcedores de escolas de samba acompanham apuração no Baródromo, Tijuca | Foto: FM

O culto ao local de nascimento é um dos muitos elementos que diferenciam escolas de samba do Rio e de São Paulo. Todas as 12 agremiações que desfilaram este ano no Grupo Especial carioca trazem sua origem geográfica carimbada em seus nomes, o que só ocorre em cinco das 14 agremiações da elite paulistana.

É complicado fazer muitas considerações só a partir desse dado, mas é evidente que a ligação das escolas do Rio com suas comunidades é bem mais ressaltada, o que indica impactos na ligação com cada área da cidade e compromissos com cada população.  É impossivel não associarmos os morros de Mangueira, Tuiuti e Salgueiro a suas escolas; a campeã Beija-Flor a Nilópolis.

Todas têm ligações explícitas com favelas ou áreas pobres de cidades de origem, ainda que em alguns casos essa vinculação não seja tão evidente, suplantada pela nomeação do bairro onde estão as respectivas comunidades. Mocidade Independente e Unidos de Padre Miguel são de Vila Vintém; Unidos da Tijuca é do morro do Borel; Vila Isabel, do dos Macacos. 

O fato de a maioria das favelas cariocas ter sido construída em morros, o que facilita sua identificação e delimitação, pode ajudar a explicar a necessidade de adaptação ao samba do conceito de DOC (Denominação de Origem Controlada) tão presente nos vinhos. São como movimentos complementares, ambos políticos: um grupo de sambistas frisa ser de tal comunidade; outro, afirma a origem, mas procura associá-la a um bairro ou cidade, numa tentativa de integração com o asfalto.

 O CEP da ancestralidade serve também para, em parte, compensar a ausência de um CEP oficial, identificação básica de cidadania, o endereço de cada um de nós que ainda é negado a tantos moradores de favelas.

É possível que essa delimitação tenha a ver com uma disputa relacionada à própria origem do samba — quem fez primeiro, quem faz melhor. Mas é inegável que o fenômeno reforça ligações com o local do assentamento de origem, onde está enterrado o cordão umbilical de cada uma delas. 

Seria incorreto negar a relação entre escolas de samba de São Paulo com territórios determinados, mas, por lá, a ligação é bem menos explícita. A existência, no Grupo Especial deste ano, de três escolas ligadas a torcidas de clubes de futebol demonstra que uma questão territorial não tão evidenciada; nesses casos, foi preciso pegar carona na popularidade de outra paixão.

O fato de o próprio fenômeno das escolas ter sido importado do Rio ajuda, talvez, a explicar essa desassociação explícita com seus berços. O engraçado é que entre as pioneiras a ligação com a origem era mais explícita — fundada em 1935, a Primeira de São Paulo deixava evidentes a iniciativa, a georreferência e o fato de ser inspirada em outras terras (é a primeira DE São Paulo).

Essas relações não definem competência das agremiações, mas ajudam a explicar o porquê de, no Rio, haver uma ligação tão forte entre a cidade e suas (o possessivo precisa ser enfatizado) escolas. A identificação de moradores de uma determinada localidade com uma escola da região é, por aqui, bem maior que a existente em relação a clubes de futebol de cada bairro (e olha que, no Rio, boa parte dos times mais tradicionais também explicita, nos nomes, suas origens geográficas: Botafogo, Bangu, Flamengo, Bonsucesso, Campo Grande, Olaria, São Cristóvão — outra diferença em relação a São Paulo).

O critério do umbigo não pode ser visto como determinante, mas ajuda a compreender algumas relações e permite que, com frequência, escolas usem seus assentamentos para, no passado, encontrar forças e inspiração para o presente, para bater no peito na hora de cantar o quilombo Beija-Flor e exaltar, como no caso da Mangueira, o povo banto que floresce nas vielas — gente que, às lágrimas, tanto se reconheceu no enredo.