Por: Fernando Molica

A corajosa folia carioca deu lições aos políticos

Pixulé, intéprete do samba da Tuiuti | Foto: Prefeitura do Rio

Nascidas de favelas vizinhas na região de São Cristóvão, as escolas de samba Mangueira e Paraíso do Tuiuti tiveram a coragem de levar para o Sambódromo causas que contrariam a onda conservadora que ameaça afogar boa parte das conquistas civilizatórias. 

A Estação Primeira não apenas resgatou a cultura banto presente no Rio de Janeiro, tratou de fazer ligação entre a herança desses povos com o presente e o futuro, mostrou como o apagamento de tantas tradições é resultado de um projeto de poder que procura manter e renovar formas de dominação.

O açoite que encontrava seu lugar no lombo dos escravizados virou a bala disparada, principalmente,  na direçao de corpos de negros. O enredo da Mangueira ressaltou o povo banto que floresce nas vielas das favelas, que há uma dívida imensa a ser resgatada.

O Tuiuti foi ainda mais ousado ao adotar como enredo a história de Xica Manicongo, tida como a primeira travesti não indígena da história do Brasil. Seria impensável imaginar, há alguns poucos anos, que uma escola de samba do Grupo Especial apresentasse um tema que mexe tantos preconceitos — a causa trans demorou para entrar na pauta até mesmo de muitos movimentos de defesa de homossexuais.

A associação entre travestis e prostituição — algo reforçado pela dificuldade dessas mulheres no mercado de trabalho formal — contribuía para o aumento do preconceito. A dualidade presente num corpo originalmente masculino transformado em feminino ainda amedronta muita gente.

De uma maneira menos contraditória do que complementar, são corpos que mexem com desejos negados e combatidos, que muitas vezes emergem numa violência nascida da repressão, válvula de escape encontrada pelo agressor. Socos e chutes ligados à lógica do "Proteja-me do que quero", uma das frases projetadas em locais públicos pela artista plástica norte-americana Jenny Holzer, que mostrou seu trabalho no Rio no fim dos anos 1990.

O Tuiuti ressaltou algo que deveria ser visto como simples: um ser humano é um ser humano, independentemente de suas características. Um princípio que, porém, tem sido cada vez mais acompanhado de exceções. 

A imagem de Pixulé — puxador/intérprete do samba do Tuiuti — travestido, maquiado, com unhas longas, é uma das mais representativas do Carnaval.

Ele ali não representava uma caricatura de travestis, mas incorporava um desafio, o de se vestir de mulher para se adequar ao enredo. Não é pouco, num universo tão machista quanto o do samba — que, olha a contradição aí, gente! — é também um dos poucos que, historicamente, dá poder a homossexuais. É só ver a quantidade de carnavalescos gays presentes nas escolas.

Os exemplos de Tuiuti e Mangueira reforçam também a covardia dos políticos que, assustados pela pauta conservadora de inspiração religiosa, buscam conciliar com o que é não pode ser admitido. É legítimo e, mesmo, necessário, gerar discussões sobre modelos econômicos, maior ou menor presença do Estado na economia, mais ou menos impostos. 

Mas não se pode transigir com a intolerância a direitos básicos de cada um de nós, o que também inclui a expressão religiosa. O medo do enfrentamento revela oportunismo e cumplicidade com a opressão. A extrema direita só conseguiu vitórias, no Brasil e em outros países, por ter insistido em suas pautas, no convencimento dos cidadãos. 

O aumento, nos últimos anos, dos enredos lastreados na religiosidade de origem africana está diretamente ligado à violência sofrida por candomblecistas e umbandistas.

Nascidas nos quilombos urbanos das favelas, sabedoras da herança do preconceito e da discriminação, as escolas entenderam que não poderiam ficar caladas. Agora, dão passos à frente e tratam de abrir espaço para uma política que, por covardia institucional, tenta escapar de suas próprias causas.