Por: Fernando Molica

Quem libertou o bandido foi a Justiça, não a "turminha"

Fachada da delegacia atacada por bandidos | Foto: Reprodução

Ao se referir, de maneira crítica e irônica, à "turminha dos 'direitos humanos'", o governador do Rio, Cláudio Castro (PL), errou o alvo e reiterou que a lógica da ditadura ainda está aqui — os militares que sequestraram, torturaram e mataram o ex-deputado Rubens Paiva também desprezavam os direitos humanos.

O governador tem todo o direito de criticar as chamadas saidindas de presos, mas a responsabilidade pela liberação do traficante  Joab da Conceição Silva, autorizado em 2019 a visitar a família, não foi da tal "turminha", mas da Justiça, com base na lei. Silva seria o responsável pelo ataque à 30ª Delegacia Policial, em Duque de Caixas, que terminou com dois policiais baleados.

O artigo da lei, um dos que seriam revogados no ano passado, previa a concessão do benefício para presos em regime semiaberto depois de ouvidos o Ministério Público e a administração penitenciária — neste último caso, órgão do governo do qual Castro já fazia parte, como vice-governador.

Não dá pra dizer que o governador da época, Wilson Witzel, é um entusiasta dos direitos humanos. Eleito no vácuo de Jair Bolsonaro, Witzel foi aquele que prometeu dar "tiro na cabecinha" de bandidos. Pelo jeito,  um subordinado de Witzel não viu problemas em autorizar a saidinha de Silva.

Defensores de direitos humanos costumam fazer críticas ao encarceramento massivo, visto até como improdutivo: o pais tem cerca de 900 mil presos, e a criminalidade continua rolando por aí. Mas, no caso específico da Lei de Execução Penal, que também trata de benefícios como o de saídas temporárias, não dá pra culpar a tal da turminha.

A lei nasceu de uma portaria de 1981, ainda durante a ditadura, no governo do general João Baptista Figueiredo. O texto foi proposto e discutido por uma comissão de juristas e aprovado pelo Congresso Nacional. Em 1983, o ministro da Justiça, Ibrahim Abi-Ackel, encaminhou o projeto para o presidente.

Alegou, na exposição de motivos, que as saídas de presos em determinadas condições contribuíam para a diminuição da superlotação carcerária. No documento, que consta de 190 itens, Abi-Ackel só citou uma vez a expressão "direitos humanos", ao se referir a um trabalho da ONU datado de 1956. Figueiredo sancionou a proposta em 1984.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi aprovada pela ONU em 1948, numa clara resposta à barbárie da II Guerra Mundial, em particular, ao Holocausto. Não foi redigida para impedir punição a criminosos, mas para garantir direitos de cada um de nós — ninguém está livre de ser acusado de um crime, de ser preso, torturado e morto. Diferentemente do que muita gente acha, o desrespeito à lei aumenta a impunidade. As pedaladas processuais de Sérgio Moro e Deltan Dallagnol, que incluiam prisões de não condenados por tempo excessivo — algo semelhante à tortura — foram decisivas para a anulação de processos.

Apertado pelos números da violência e pelo absurdo ataque à delegacia, Castro optou pela saída mais simples, a de jogar um problema do estado no colo de quem nada tem a ver com a história. Tenta pegar carona num senso comum que atribui a violência aos defensores dos nossos direitos. E ele sabe que polícia violenta costuma ser sinônimo de polícia corrupta, que se aproveita da impunidade até para cometer crimes.

No mais, ataques como o ocorrido seriam ainda maiores se não fosse a atuação de um grande defensor dos direitos humanos, o antropólogo Luiz Eduardo Soares que, em 1999, no governo de Anthony Garotinho, concebeu e implantou as delegacias legais — isto acabou com a custódia de presos nestas repartições. Caso ainda houvesse celas por lá, as DPs seriam atacadas quase todos os dias.