Por: Fernando Molica

A epidemia da violência

Ônibus queimados por milicianos no Rio | Foto: Rioônibus/Agência Brasil

As imagens de um novo conflito no Rio mostram que apenas inocentes e mal-intencionados alardeiam que a violência pode ser contida apenas com doses ainda mais elevadas da receita que combina  repressão, mortes e encarceramento.

As PMs têm que ser mais bem treinadas e equipadas, as investigações das polícias civis precisam ser aprimoradas, a atuação do Ministério Público e da Justiça é essencial. Mas não dá pra combater uma espécie de epidemia apenas com remédios habituais, que tratam apenas dos sintomas.

Há bandidos em todas as sociedades. O problema é quando o desvio se torna um caminho habitual e centenas de milhares de jovens, talvez milhões, decidem abraçar o crime. 

Neste caso, é preciso admitir que o problema é coletivo. O Brasil tinha, no ano passado, cerca de 850 mil presos. Somos o sétimo país mais populoso do mundo e estamos em terceiro lugar entre os que mais encarceram; nossa polícia não pode ser acusada de excesso de complacência com bandidos. E o crime não para de crescer.

Não tendemos mais ao crime do que outros povos, precisamos entender as causas de tantos problemas. A questão, há muitas décadas, deixou de ser algo que possa ser encarado de maneira individual, na base do fulano é bozinho e beltrano é mau.

Nossa sociedade foi construída com base na discriminação e na desigualdade, criamos um ambiente hostil para os que estão fora da cadeia formal de oportunidades. Não se trata de associar pobreza à criminalidade — ricos roubam muito, e na soma, muito mais, o Brasil é injusto até na ladroagem.

A violência costuma ser pior não nos países pobres, mas naqueles omde há mais desigualdade, onde milionários e miseráveis são vizinhos, como ocorre nas cidades brasileiras.

Há muitos anos estive numa escola que funcionava no alto do morro do Cantagalo, entre Ipanema e Copacabana. Da janela da cozinha, quem olhava à esquerda via a favela; à direita, Ipanema e Leblon. Como cantaria a Mangueira, anos depois: "No Rio de lá/ Luxo e riqueza/ No Rio de cá/ Lixo e pobreza".

Foi inevitável pensar no tamanho do abismo, nos meninos que, nascidos ali, viam aquele contraste todos os dias, e tinham a certeza de que seria muito difícil trocar de lado.

Isso não quer dizer que a maioria tenha pulado a cerca da legalidade, longe disso. Mas revela motivos para uma revolta: o problema maior não é nascer pobre, mas viver numa sociedade que foi feita para fazer com que a pessoa morra pobre.

A polícia tem como dar conta de uma bandidagem limitada, sejam ladrões de rua ou dos cofres públicos. Mais é complicado lidar com a epidemia que faz da opção pelo ilegal um caminho para a busca de bens e prazeres que se mostram inacessíveis pelos caminhos formais. Vida de bandido é perigosa, é grande a chance de o sujeito ser preso ou morto — a opção pelo crime é quase sempre resultado da falta de esperança. 

Não adianta cercarmos nossos prédios, contratarmos mais e mais seguranças, é impossível colocar um policial em cada esquina 24 horas por dia, não há orçamento, privado ou público, capaz de conter tanta gente gente desesperada, disposta a tudo. Sociedades mais seguras são aquelas mais equilibradas e menos injustas, é só ver o exemplo de países europeus.

É preciso combater o crime, enfrentar as parcerias públicos-privadas entre bandidos e agentes públicos, mas o fundamental é criar um ambiente mais justo e promissor para a maioria da população.

O Brasil que normalizou a pobreza e a injustiça agora aprende a aceitar o inaceitável — bandidos e policiais armados de fuzis, condomínios transformados em bunkers, medo por toda parte, cadáveres sendo empilhados em operações inúteis, crianças baleadas. A receita tem que ser mudada.