Depois de afirmar que a tentativa de golpe de 8 de Janeiro não foi uma tentativa de golpe, o presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), não surpreenderá ninguém se disser que a Terra é plana, que Kamala Harris ganhou a eleição norte-americana e que ele não foi um aliado do então deputado Eduardo Cunha.
Não dá para negar o óbvio: a intentona de 8 de Janeiro foi consequência lógica de uma série de fatos articulados pelo Palácio do Planalto e por lideranças militares e civis para derrubar a democracia.
O que houve na Praça dos Três Poderes não foi um fato isolado e desconectado, mas o resultado de um processo que envolveu questionamentos às urnas eletrônicas, ação da Polícia Rodoviária para impedir que eleitores chegassem às urnas, ameaças de viradas de mesa, o não reconhecimento da derrota por Jair Bolsonaro, o bloqueio de estradas e a cumplicidade das Forças Armadas com manifestações de viés golpista diante de quartéis.
A lista feita no parágrafo anterior é composta apenas de fatos públicos. As investigações conduzidas pela Polícia Federal acrescentaram mais informações relacionadas à trama golpista. Peças encaixadas nos fatos de conhecimento geral e que aos poucos demonstraram o tamanho da ameaça que pairava sobre todos nós — inclusive sobre o mandato de Hugo Motta. Ditaduras também gostam de perseguir ex-aliados. Muitos de seus colegas, entre eles, muitos que votaram nele para presidente da Câmara, estariam presos, exilados ou mortos.
A turba que ocupou, invadiu e depredou o centro do poder naquele domingo tinha o objetivo de tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído. Para isso, com emprego de violência ou grave ameaça, tentou abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais, crimes previstos pelo Código Penal.
Com exceção de um ou outro desavisado, todos os que, naquele 8 de janeiro, saíram do acampamento abençoado pelo Exército e se dirigiram à Praça dos Três Poderes tinham o objetivo claro de derrubar o presidente da República e gerar uma intervenção militar que implantaria uma ditadura.
Aqueles homens e mulheres, todos maiores de idade, participaram de atos que pediam a entrada dos militares no processo político e a derrubada do governo: fizeram isso desde o anúncio do resultado eleitoral, é o que estava escrito em suas faixas.
Muitos dos que estavam lá entraram nos palácios, agrediram policiais, quebraram móveis e objetos de arte; teve um que defecou na sede do Executivo. Todos sabiam o que faziam, tinham tanta certeza de que seriam bem-sucedidos que vários postaram vídeos e fotos de seus atos. É evidente que alguns foram mais agressivos do que outros, mas nenhum foi até lá com a intenção de promover um piquenique no parque. O fato de alguns portarem exemplares da Bíblia não os exime de culpa, a história da humanidade está cheia de exemplos de barbáries cometidas em nome de algum deus.
Motta, que tanto citou Ulysses Guimarães em seu discurso de posse, amenizou o 8 de Janeiro para, assim, de forma disfarçada, defender aqueles que queria reimplantar uma ditadura que, como qualquer outra, é digna de ódio e de nojo.
Ex-emedebista, Motta deveria lembrar de um outro integrante histórico de seu antigo partido, o deputado federal Alencar Furtado, do Paraná. Em 1977, num programa do MDB transmitido em rede nacional de TV, ele falou nos desaparecidos pelos militares.
O parlamentar, que teria seu mandato cassado por suas palavras naquele programa, foi claro ao justificar sua condenação à ditadura: "Para que não haja no Brasil lares em pranto; para que as mulheres não enviúvem de maridos vivos, quem sabe, ou mortos, talvez — viúvas do quem sabe e do talvez; para que não tenhamos filhos de pais vivos ou mortos, órfãos do quem sabe e do talvez". O Brasil deste talvez não pode voltar.