Por: Fernando Molica

Os muitos culpados pela tragédia em Salvador

Com vários problemas estruturais, a igreja continuava a receber turistas | Foto: Foto de leitora/Thaís Velloso

Não há inocentes entre os que, de maneira ou indireta, foram incapazes de prevenir o desabamento do teto da Igreja de São Francisco, em Salvador, acidente que matou uma jovem, deixou cinco feridos e destruiu parte de um dos mais belos e importantes monumentos do país.

O fato de a igreja pertencer a uma ordem religiosa não exime o Iphan  (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) da falha grave de não ter agido - desde pelo menos junho de 2023 que o órgão sabia que a situação do templo era ruim, como está registrado em documento oficial. Esta edição do Correio traz novas evidências de que a gravidade da situação era conhecida por muita gente.

Além da Ordem Primeira de São Francisco e do Iphan, a Defesa Civil da Bahia também errou ao não impedir o acesso de fiéis, funcionários e turistas ao interior da igreja. Houve um crime que pode ser classificado de homicídio doloso eventual, quando, ao se omitirem, suspeitos assumem o risco de causar mortes.

Baiana de Salvador, a ministra da Cultura, Margareth Menezes falhou ao não agir - não é razoável que alguém tão ligada à cultura de seu estado não soubesse das condições precárias de uma construção tão importante.

De férias em Salvador, estive nesta igreja há menos de mês - foi possível ver estacas de madeira fora da nave principal, sinal de que havia problemas estruturais por lá. Era um dia de semana à tarde, estava cheia de turistas como Giulia Panchoni Righetto, a jovem de 26 anos que foi morta pela queda do teto.

Nessas horas, repete-se o ritual de lavagem de mãos. Presidente do Iphan, Leandro Grass, chegou a diminuir a importância de um documento enviado na última segunda-feira  pelo frei Pedro Júnior Freitas da Silva, guardião e diretor do conjunto. Nele, o religioso falava de problemas no texto. 

Grass, porém, disse que, se o problema fosse urgente, o frade deveria ter telefonado para o Iphan. Isto, como se o órgão responsável pelo patrimônio nacional não soubesse da importância da igreja e que a situação do prédio era ruim, tanto que, em dezembro de 2023, como mostrou ontem a coluna Correio Bastidores, contratou a empresa Solé Associados para fazer projetos executivos para a recuperação do templo.

Em maio do ano passado - confira reportagem na página 8 - relatórios enviados pela empresa ao Iphan mostravam riscos de desabamento e de graves problemas elétricos. Está tudo escrito e documentado.

O órgão federal tem o direito de alegar que, vítima de um desmonte no mandato de Jair Bolsonaro, tem pouca gente para analisar processos. Mas houve uma falha grave ao hierarquizar os problemas. O que estava em jogo era um patrimônio nacional, a Igreja de Ouro conhecida internacionalmente como um dos mais ricos e belos exemplos da arquitetura barroca de influência portuguesa.

Pior: um dos grandes pontos de interesse de Salvador (BA), a igreja era visitada diariamente por centenas de turistas, pessoas que desconheciam o risco de ficarem sob um teto que, há seis meses, dera sinais de desgaste - é o que conta a coluna Correio Bastidores de hoje.

Os responsáveis pela igreja fizeram reparos no forro, mas não atacaram a fonte dos problemas, que só poderia estar mais acima, na estrutura que sustentava a madeira que servia de tela para belíssimas obras de arte.

O que houve na Igreja de São Francisco é imperdoável e demonstra a fragilidade de um Estado que deveria zelar pelo seu patrimônio e, principalmente, pela vida. O coro de justificativas já está presente, mas isso não deve diminuir o ímpeto da apuração. Uma pessoa morreu, outras ficaram feridas, um tesouro da humanidade foi destruído pela irresponsabilidade de muita gente. Essas pessoas têm que pagar pelo que fizeram e pelo que não fizeram.