A confusão em torno dos gastos da socióloga Rosângela Lula da Silva, a Janja, é uma oportunidade para o país discutir essa idiotice que é chamar a mulher do presidente de "primeira-dama", denominação arcaica, machista e desconectada da lógica republicana.
Inspirada nas prima-donas de óperas, a expressão teria passado a designar mulheres de presidentes no século XIX, nos Estados Unidos. Isto, para compensar a inexistência das rainhas e princesas do Reino Unido, terra natal dos primeiros imigrantes que chegaram à América do Norte.
Essa vinculação das mulheres de presidentes à nobreza é uma tentativa de destacá-las da plebe, de torná-las únicas, primeiras. Numa república, não pode haver uma hierquização entre cidadãos. A existência de uma primeira-dama joga para um patamar inferior todas as demais mulheres do país.
A expressão também carrega uma explícita situação de subserviência da mulher ao marido. Ela deixa ter profissão e autonomia, é definida pelo seu papel de esposa.
Num passado recente, essa subordinação levava a situações constrangedoras. Em reuniões de presidentes e de primeiros-ministros, por exemplo, suas respectivas esposas cumpriam agendas paralelas, associadas ao que se entendia de feminino.
E tome de chás, visitas a escolas, idas a desfiles de moda. Uma sequência de eventos sociais que ressaltava a inferioridade daquelas mulheres em relação aos seus maridos.
A presença cada vez maior de mulheres nas universidades, no mercado de trabalho e na política jogou pra escanteio essas besteiradas. Fora que seria impensável encaixar os maridos de Margareth Thatcher e Angela Merkel numa programação dita feminina.
O negócio é tão explicitamente preconceituoso que a denominação "primeiro-cavalheiro" nunca vingou. Os maridões das poderosas cuidam das suas vidas e, vez por outra, posam ao lado delas.
A evolução dos costumes e a aceitação das diferenças também contribui para a necessidade de morte da expressão primeira-dama: sei lá se, no Rio Grande do Sul, é comum que as pessoas se refiram ao médico Thalis Bolzan, casado com o governador Eduardo Leite, como primeiro-cavalheiro.
Primeiras-damas não passavam de peças de marketing que ajudavam a aumentar a popularidade do governante, especialmente as muito bonitas — olha o machismo de novo — como Jacqueline Kennedy, Evita Perón, Michelle Obama e, por aqui, Maria Thereza Goulart e Michelle Bolsonaro.
É razoável admitir que mulheres e maridos de governantes palpitem em suas administrações, são pessoas que vivem juntas. O complicado é dar poder a quem não passou pelas urnas. Como diria Sérgio Moro, ser "conje" de presidente não é tão simples, afeta a vida pessoal e profissional do/a parceiro/a, impõe limites.
Seria impensável que a advogada Michelle trabalhasse em algum escritório enquanto morava na Casa Branca, haveria questões sérias relacionadas à própria ética pública. Também pegaria mal se Janja continuasse a trabalhar na Itaipu Binacional — uma estatal que, no limite, é comandada pelo marido dela.
Mas também não seria razoável condenar profissionais como a antropóloga Ruth Cardoso a supervisionar a cozinha do Alvorada durante o governo de Fernando Henrique.
Talvez o melhor seria definir de maneira institucional o papel dos cônjuges, o que podem e, principalmente, o que não podem fazer. Isso exigiria uma discussão ampla e não apaixonada ou fulanizada. Caberia à esposa ou marido do/a governante ter alguma tarefa de representação, poderia ganhar um gabinete e assesores? Qual o limite das suas verbas?
Mas o primeiro passo é dessacralizar e jogar na lata de lixo a expressão primeira-dama (implico tanto com isso que, em mais de 40 anos de jornalismo, creio ser esta a primeira vez que a escrevo).
Por: Fernando Molica
A expressão "primeira-dama" tem que ser abandonada
