Prenunciado pela literatura há 76 anos, o cataclisma coercitivo do livro "1984", no qual uma inteligência digital vigia cada pobre diabo deste planeta, ganha novos (e mais alarmados) ecos na arte, em múltiplas mídias, no momento da História em que o ChatGPT e miolos eletrônicos afins passam a substituir gente de carne e osso nas seleções laborais. Os algoritmos de redes sociais que mapeiam nossos desejos sem a nossa demanda ou autorização são uma evidência de que o Grande Irmão (o Big Brother) criado por George Orwell (1903-1950) no romance "Nineteen Eighty-Four" (1949) extrapolou as páginas. Uma série de releituras dessa trama se espalha hoje por diferentes campos de criação, incluindo um dos achados do 78° Festival de Cannes, realizado em maio: o ensaio documental "Orwell: 2+2=5", do haitiano Raoul Peck.
Indicado ao Oscar por "Eu Não Sou Seu Negro" (2016), o cineasta alarga o conceito de biografia ao partir de Orwell e da sua distopia literária para devassar os estratagemas midiáticos para reduzir as mentes pensantes a gado. A palavra ao lado, "gado", tem ainda mais peso quando se sabe que o romancista em foco escreveu "A Revolução dos Bichos" (1945), no qual um porco chamado Napoleão resolve controlar os demais animais.
No longa de Peck, Orwell é classificado como branco britânico, nascido numa Índia de segregação feroz no seu regime de castas. A escolha dele como eixo é narrativo uma forma de Peck entender como o Velho Mundo instaurou a intolerância como práxis de hierarquização, sem perceber que estava a ser devorado por uma besta faminta que povoou (os EUA) com o intuito de expandir os seus domínios e disseminar as suas línguas.
"Num espelho da manipulação midiática de '1984', os documentários hoje passam por uma nova cilada com o streaming. É verdade que a demanda pelo formato documental aumentou, mas as plataformas impõem um processo de seleção que se pauta por critérios comerciais", disse Peck, em entrevista ao Correio da Manhã em Cannes, na feitura de "Orwell: 2+2=5". "O que importa na demanda são biografias de celebridades e histórias sobre crimes reais. O documentário que eu faço se pauta pela criação. Eu lido com arquivos, porque meu papel político é recuperar a História".
No radar do cinema também nas raias da ficção, com o projeto "Nineteen Eighty-Fear", feito por Andrea D'Agostino, em Roma, "1984" assume como herói Winston, servidor do estado que vive aprisionado numa engrenagem totalitária. Nela, ninguém escapa à vigilância do Grande Irmão, espécie de olho eletrônico gigante. Essa trama, que conta com boa edição em português pela Cia das Letras, ganhou em abril uma adaptação em áudio com Lázaro Ramos, Alice Carvalho, Mateus Solano e Milhem Cortaz (como o Big Brother). O projeto é da plataforma Audible, da Amazon, e assegura uma imersão devastadora.
No Rio, neste fim de semana, é possível conferir no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) a eletrizante montagem "2+2=5", vinda de Brasília e articulada pelo ATA - Agrupação Teatral Amacaca, do DF, com Felipe Vidal (um dos estandartes da invenção das artes cênicas cariocas) como diretor convidado. Multimídia, o espetáculo (em cartaz até 29 de junho) bate cabeça para a escrita de Orwell ao manter sua trama na Oceânia, território que engloba a faixa de terra onde havia o Brasil. O toque de Midas da adaptação, escrita pela própria companhia (com um elenco em estado de graça) funde milícia e religiões neopentecostais no domínio do mundo que retratam. Nele, odiar é lei e a matemática não é ciência exata, é cabresto.
"Nós estreamos a peça no festival Cena Contemporânea, de Brasília, em 2023. Nessa época, a questão da cultura do ódio, da formatação de um inimigo a ser atacado e odiado, estava bem evidente", explica Vidal ao Correio. "O que foi se aprofundando depois foi a questão das inteligências artificiais. Quando a gente chamava o Big Brother de GPT era quase uma piada. Agora, a presença do GPT e a iminência dessas inteligências artificiais tomarem concretamente trabalho das pessoas dão a dimensão do quanto o Orwell foi profético, né? Em alguma medida, a realidade está até superando as profecias do Orwell na distopia. Então, por isso que é importante a gente também ir aos clássicos para tentar não mergulhar nessas distopias de controle totalitário. Foi bastante simbólico a gente estrear essa peça em Brasília, onde estão cada vez mais fortes as arenas de desinformação. Os próprios deputados e senadores têm suas fake news e suas estratégias de criação de inimigos para se perpetuarem ali, no controle".