Ninguém interpretou a masculinidade do poeta Oswald de Andrade (1890-1954) melhor do que... uma mulher. Essa intérprete é uma atriz genial, que a partir deste fim de semana passa seu passado de estrela em revista no palco do Teatro Poeirinha, com sessões às 20h: a diva Ítala Nandi. Sua aventura oswaldiana movimentou "O Homem do Pau Brasil" (1982), filme seminal de Joaquim Pedro de Andrade (1932-1988). Ela brilhou nesse e em muitos outros longas, como "Prata Palomares" e "Os Deuses E Os Mortos. Não por acaso é um diretor de cinema, o documentarista Evaldo Mocarzel ("Do Luto À Luta") quem dirige sua nova incursão pelas artes cênicas, "Paixão Viva", um monólogo de essência memorial. Na entrevista a seguir, ela repensa o que existe de poético na fricção com o passado.
O que a troca com um cineasta, que também é dramaturgo e encenador, como o Evaldo Mocarzel, traz de mais enriquecedor para o seu processo de interpretação, para a investigação de sua história?
Ítala Nandi: É muito enriquecedor trabalhar com o Evaldo. Este é o nosso terceiro trabalho juntos. Ele é muito inteligente, tem muito conhecimento, não só como jornalista, mas isso também dá a ele grande força como diretor. Tem muita riqueza de vivência, isso que me parece, e em todas as áreas: na literatura, na dramaturgia, no teatro e no cinema. Ele tem uma visão muito inovadora, importante para o ator. Nós estamos sempre necessitando disto nesse nosso ofício. Para o espetáculo, ele criou uma espécie de documentário cênico. Temos projeções de trechos dos meus filmes e de personagens e personalidades importantes da minha trajetória. Zé Celso é um dos fundamentais, foi o irmão que eu não tive. Estivemos em maio de 1968 em Paris com o "Rei da Vela". Ele, eu, Fernando Peixoto e Renato Borghi. Uma bomba de efeito retardado entrou no nosso quarto e acertou a cabeça do Zé Celso. Foi louco demais. Muitos episódios. Aconteceu cada coisa na minha vida! Agora estou revivendo tudo no palco... e sozinha, pela primeira vez.
Qual é o limite em que memória vira saudade no seu olhar sobre seus 65 anos de feitos teatrais?
Devo dizer que saudade nenhuma. Eu acho que a gente tem saudade daquilo que não realizou. O que foi realizado não nos dá saudade. É como uma lembrança boa, carinhosa, mas saudade não é. E, de fato, eu não tenho lembrança na minha vida de ter encontrado uma dificuldade ou uma não realização de algum trabalho. Eu sempre escolhi. Nunca aceitei o convite para um personagem de que eu não gostasse. Se não aceitasse, eu dava uma boa desculpa. Só fiz as personagens de que eu gostei. As lembranças são muito boas, muito mesmo, e me trazem muita alegria, mas não saudade.
Que importância Mário de Almeida - um encenador crucial para a gênese de muitos talentos do Sul, com seu Teatro de Equipe - teve no seu histórico de encontros?
Os dois anos em que eu vivi em Porto Alegre, trabalhei no Teatro de Equipe com o Mário de Almeida, uma pessoa admirável. Foi um autor e diretor de primeira qualidade. Era a época da Legalidade. Fazíamos teatro em cima de um caminhão para as comunidades. Eu conto essa história na peça. Fui casada com o Fernando Peixoto, que era meu grande mestre. Ele que me tirou de uma colônia de Caxias do Sul, embora eu já tivesse instrução, porque lia muito no colégio. Estudei Contabilidade. Sou contadora. Em Porto Alegre, encontrei um núcleo de uma efervescência absoluta, que eram os jornalistas e escritores às voltas com a criação do Festival de Gramado. Depois fui para São Paulo, para o Teatro Oficina.
O que as vivências recentes nas telas, com Clara Linhart, Fellipe Barbosa e Anna Muylaert, trouxeram de percepção sobre o cinema brasileiro atual?
Adorei fazer o filme "Domingo" com a Clarinha e o Felipe. Ela, eu conheço desde criança, amiga do meu filho, Giuliano. Filmar em Pelotas, no Sul, foi bom demais. Ela sem dúvida é uma grande diretora e tem sido brilhante em seus trabalhos. Gostei muito também de "Os Sapos". Muito gratificante vê-la brilhar e, sem dúvida, está se tornando uma das nossas maiores diretoras de cinema. A Anna é uma mestra em todos os sentidos. Poderosa e cheia de personalidade e peculiaridades. Eu não conseguia entender porque eu, a mais velha da equipe, fui escolhida para fazer a cena de sexo mais forte do filme dela chamado "O Clube das Mulheres de Negócios"). Eu nunca tinha feito uma suruba. Ela ficou espantada com essa informação, mas aí me explicou: disse que como eu fui símbolo de liberdade para as mulheres nos anos 1960, agora, aos 80, eu seria também para as mulheres de 60. Ela é genial e eu amei fazer o filme "Clube das Mulheres de Negócios". Vejo que as mulheres estão criando um novo Cinema Novo, incrível, feito por elas.