Rostos não atravessam os séculos porque seus traços morrem; são elas, as palavras, que transpassam o tempo, e os rostos apenas as encarnam. Uma das palavras que se converte em rosto chama-se traição. Rostos não atravessam os séculos. A palavra traição sim. Seja no rosto do guerreiro Armínio, do século 9, seja no rosto do cabo Anselmo, do século 20, a traição, indiferente ao tempo ou ao contexto, é o mesmo fenômeno não social ou histórico, mas o mesmo fenômeno dado pela natureza do rosto.
Sempre muito feliz e muito convicto de si, o Senso Comum repete sempre que o traidor ou usa máscara, ou tem dois rostos. O traidor, porém, possui tão somente, sem máscara, um só rosto, que é sempre o mesmo. Assim, senhor de seu próprio rosto, o traidor domina seus próprios traços, a ponto de qualquer um se identificar com ele, porque, caso seu rosto não seja (des)coberto - o que é dificílimo -, a traição simpatiza-se com todos.
O mesmo rosto, portanto, adapta-se ao outro conforme seus interesses, ou seja, o mesmo rosto, sem deixar de ser o mesmo, é outro rosto. Dessa forma, repito, sempre outro sem deixar de ser o mesmo, não se vê no rosto do traidor a oposição entre ser e não-ser. A traição neutraliza o dualismo, neutraliza a oposição, porque o rosto coloca-se entre ser-e-não-ser, ou seja, fixa-se [como movimento] no meio, o que faz do rosto ser natural à luz do dia e, por ser natural ou por representar a si mesmo como simpático ao outro, ele é ser-e-não-ser ao mesmo tempo porque se movimenta entre signos opostos.
A fim de ser evidente só com um exemplo, trago não a erudição clássica de um livro, e sim o que milhões veem à noite, no caso, a novela "Vale Tudo", onde Raquel, a mãe, mantendo sua identidade, sempre é a mesma; Maria de Fátima, a filha, contudo, mantendo-se sempre outra sem deixar de ser a mesma, cria linhas de fuga, já que tais linhas movimentam-se entre signos desiguais. A traição é linha de fuga, pois a traidora Maria de Fátima é-e-não-é ao mesmo tempo, o que permite a mãe se identificar em uns momentos e não se identificar em outros com a filha.
Aprendemos com Maria de Fátima que, se a traição oferece a ela plasticidade social, é porque a traição assume, de forma natural, representações várias: ora um rosto, ora outro, e isso sem deixar de ser o mesmo rosto, Maria de Fátima é pobre, é grata, é rica, é ingrata, é vítima, é ladra, enfim, entre ser-e-não-ser, se seu rosto engana, é porque vale tudo.