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Pequenas empresas, grandes negócios

Por Affonso Nunes

Valendo-se da autorização para contratar sem licitação, para agilizar o combate à pandemia de Covid-19, o Governo Estadual efetuou até a última semana 203 negócios totalizando R$ 1.926.222.261,89. Foram beneficiadas, ao todo, 71 empresas, sendo que praticamente a metade deste bolo foi para a OS Iabas, que recebeu um contrato de R$ 835.772.409,80 (43,4%). Mas não são apenas grandes companhias que o Estado está recrutando em caráter de urgência. Levantamento feito pelo deputado estadual Anderson Moraes (PSL) mostra que, dos 20 maiores contratos celebrados, oito foram com empresas de capital social igual ou inferior a R$ 100 mil. Trocando em miúdos, empresas de pequeno porte estão assumindo contratos milionários.

O que todas essas empresas têm em comum é que foram contratadas de forma direta pelo subsecretário-executivo de Saúde, Gabriell Neves. Apesar da dispensa de licitação estar amparada legalmente, para dar celeridade aos processos, é recomendável que o gestor público convoque empresas para que elas ofereçam propostas de seus produtos e serviços. Tal ferramenta dá mais segurança à administração, garantindo uma formação de preços mais dentro da realidade.

- Podemos dizer que, no mínimo, faltou bom senso. Abrir uma consulta ao mercado para pesquisar preços seria o normal - comenta Moraes, estranhando que algumas dessas empresas tenham sido contratadas às pressas mesmo sem qualquer relação anterior de fornecimento para a administração estadual.

O caso mais conhecido é o da A2A Comércio, Serviços e Representações LTDA, com capital social de R$ 20 mil assinou um contrato de R$ 58,9 milhões para fornecer 300 ventiladores pulmonares, ao custo de R$198 mil cada. Uma pesquisa de mercado via Google mostraria equipamento semelhante a um custo unitário entre R$ 70 e R$ 80 mil, mesmo com a forte demanda em função da pandemia. E a A2A sequer tem como expertise a comercialização de itens médicos. É uma empresa que vende artigos de informática.

Outro exemplo é a MHS Produtos e Serviços LTDA, encarregada de fornecer cada ventilador pulmonar por R$ 187.560,00. Firmou contrato de R$ 56,2 milhões com a Secretaria de Saúde e também é uma empresa de pequeno porte com capital social de R$ 100 mil. Aparece no cadastro do Portal da Transparência da Controladoria Geral da União (CGU) como fornecedora de alimentos.

- São empresas sem qualquer estrutura e montadas para participar de licitações ou consultas públicas. Ao pesquisar a situação cadastral, encontramos uma quantidade enorme de atividades secundárias. Se ela têm várias especialidades é porque não tem nenhuma. E recebe adiantado do Estado para dar início à operação – critica o deputado, que é autor de um pedido de abertura de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar os gastos do Estado no combate ao coronavírus.

A MHS tem em seu CNPJ a permissão para exercer outras atividades, bastante variadas aliás, tais como instalação e manutenção de sistemas centrais de ar condicionado, de ventilação e refrigeração; edição de jornais; consultoria empresarial; e comércio a varejo de peças e acessórios para veículos, lubrificantes, equipamentos e suprimentos de informática, eletrodomésticos, móveis, artigos de cama, mesa e banho, brinquedos, produtos farmacêuticos e (finalmente) artigos médicos e ortopédicos. A prática não é ilegal, mas o mais indicado é que essas atividades guardassem uma relação mínima entre si.

- É como se a empresa fosse um grande conglomerado econômico – ironiza o parlamentar, que foi ao endereço da empresa, no bairro de Guaratiba, e encontrou uma casa que em nada parece comportar tantos negócios.

Em outro caso, a Log Health Logística Gestão em Saúde de Terapia Intensiva Eireli, com capital de R$ 93,7 mil, assumiu o compromisso de gerenciar leitos em hospitais de campanha e para isso assinou um contrato de R$ 106,9 milhões.

Mas os valores reduzidos de capital social chegam ao extremo nos casos da Central de Atendimento e Serviços LTDA e a Fundação Educacional André Arcoverde cujos contratos sociais foram estipulados em R$ 0,00. A primeira assinou contrato com o Estado para gerenciar uma unidade de call center do coronavírus a um custo de R$ 4,8 milhões. E fundação, localizada em Valença, fechou contrato de R$ 4 milhões para gerenciamento de infraestrutura de 15 leitos.

Um profissional de contabilidade ouvido pelo CORREIO DA MANHÃ esclarece que o capital social de uma empresa deve corresponder ao valor equivalente ao investimento necessário para as sua abertura, considerando legalização, formação de estoques, movimentação inicial e integralização de bens.

- As melhores práticas contábeis estabelecem que o capital social deva, portanto, ser equivalente à atividade da empresa. Até porque no caso de empresas limitadas qualquer problema que ocorra, o sócio responde no limite do capital. Ou seja, numa empresa de capital de R$ 100 mil e um contrato de R$ 50 milhões, os sócios só poderiam ser interpostos no valor do capital declarado, o que fere a lógica matemática – explica o dono de um importante escritório de consultoria contábil carioca.

O consultor destaca que essas compras sem licitação acabarão, invariavelmente, sendo objeto de investigação futura, para coibir excessos.

- Fatalmente haverá excessos nos preços, na aquisição, na entrega... Porque uma vez que você dispensa licitação e não há tomada de preços, não existe garantias acerca da qualidade do item comprado e tampouco a entrega. Acredito que, por um viés de transparência, deveria ter sido feito algo parecido com uma tomada de preços, que é o mínimo que ambiente privado pratica – acrescenta o especialista, citando como exemplo o cadastro de fornecedores da administração pública, disponível em meio digital.

Outro lado

Procurada pelo CORREIO DA MANHÃ, a Secretaria de Estado de Saúde emitiu a seguinte nota: “A Secretaria de Estado de Saúde (SES) esclarece que, em nome da transparência da gestão e para atender às determinações de lisura e austeridade do Governo do Estado e por decisão do governador Wilson Witzel e do secretário Edmar Santos, abriu auditoria permanente para acompanhar todos os contratos realizados pela pasta durante o período de estado de emergência.

Nesse processo, foi solicitado que a Assembleia Legislativa, Tribunal de Contas, Ministério Público e Controladoria Geral do Estado acompanhem e auditem as contratações de bens e serviços realizadas especificamente para o enfrentamento do coronavírus no Estado. O objetivo é garantir que todos os processos sejam realizados dentro da estrita legalidade e com a devida transparência”.

 Fachada da casa onde funciona a MHS, em Guaratiba, uma  das fornecedoras de ventiladores pulmonares do Estado

Foto: Anderson Moraes

 

 Gabriell Neves, afastado da subsecretaria-executiva de Saúde, comandou os processos de contratação sem licitação

Foto: Governo do Estado do Rio - Divulgação

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