PEC da blindagem coloca parlamentares acima da lei, afirmam juristas

Ao Correio, juristas apontam inconstitucionalidade por violação a cláusula pétrea sobre tripartição dos poderes e consideram a proposta de emenda um retrocesso

Por Eline Sandes - BSB

Projeto da reforma administrativa foi protocolada na Câmara no dia 28 de outubro

A Proposta de Emenda à Constituição 3/2021, a PEC das Prerrogativas, também conhecida como 'PEC da Blindagem', entrou na pauta da Câmara, mas a votação foi adiada na quarta-feira (27) por falta de consenso entre a base governista e a oposição. Diante da expectativa de o texto ser retomado, especialistas ouvidos pelo Correio alertam para o risco de os deputados aprovarem mudanças que ferem princípios constitucionais, como a igualdade de todos perante a lei   

A PEC — que foi defendida pela oposição e também pelo presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB) — amplia a proteção dos parlamentares contra investigações e decisões judiciais, como se eles estivessem acima das leis. A alteração busca condicionar o cumprimento de ordens judiiais à aprovação de pelo menos 2/3 dos membros do plenário da Câmara e do Senado. 

Conforme os especialistas ouvidos pela reportagem, a PEC viola, por exemplo, o Art. 5° da Constituição Federal, que prevê a igualdade de direitos entre todos os brasileiros. Na sua opinião, o texto também representa uma quebra na tripartição dos Poderes, cláusula pétrea definida nos princípios fundamentais da Carta. Ou seja, um grande retrocesso no modelo de freios e contrapesos que configura uma inversão à lógica dos papéis típicos do Legislativo e do Judiciário.

Proposta inconstitucional

De acordo com Miguel Godoy, advogado constitucionalista e professor na Universidade de Brasília e na Universidade Federal do Paraná, a PEC é inconstitucional e fere o princípio republicano, cláusula pétrea na Constituição Federal de 1988.

"Essa proposta do Congresso de retomar a exigência de autorização legislativa para investigar parlamentares é inconstitucional por ofensa ao princípio republicano. O princípio republicano é uma cláusula pétrea implícita, e a tentativa de restaurar uma prerrogativa que dificulta a investigação criminal de parlamentares é frontalmente incompatível com a forma republicana de governo. Trata-se, portanto, de uma PEC inconstitucional em seu objeto que sequer deveria ser objeto de deliberação", afirma.

Retrocesso incompatível com a democracia

Godoy afirma que, caso seja aprovada, a PEC poderá ser alvo de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no STF, pois a exigência de autorização do Congresso para investigar parlamentares afronta cláusulas pétreas da Constituição — viola a separação dos Poderes, o princípio republicano e a igualdade de todos perante a lei.

"Trata-se de um retrocesso institucional inaceitável, pois cria um privilégio incompatível com a democracia e a responsabilidade pública. O STF já consolidou que prerrogativas não podem se transformar em blindagem. Essa proposta, além de anacrônica, é antirrepublicana e não passará incólume ao controle de constitucionalidade", explica.

Marcelo Crespo, coordenador do curso de Direito na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), reitera que a PEC é um grande retrocesso, na medida em que "o legislativo vai precisar julgar se o judiciário poderia julgar". Para o professor, a proposta de blindagem "cria, sem dúvida nenhuma, uma imunidade amplíssima" aos parlamentares.

"Não só uma imunidade ampla: amplíssima. Esvazia muito o papel do poder Judiciário e resulta em uma possível quebra no pacto federativo na tripartição dos poderes. Você tira o papel do poder Judiciário de fazer o julgamento previsto na Constituição e o transfere ao Legislativo. Isso é uma inversão clara da lógica de papéis", diz.

PEC atinge questões complexas

Para Flávio Molinari, sócio do Collavini Borges Molinari Advogados e doutorando em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), a PEC trata de questões complexas tanto para quem a defende quanto para quem é contrário à sua aprovação.

"A chamada 'PEC da Blindagem', por um lado, resgata mecanismos previstos na Constituição de 1988 e é defendida como forma de proteger a independência do Legislativo e evitar abusos investigatórios. Por outro, ao exigir autorização prévia do Congresso para abrir investigações ou aceitar denúncias, a proposta reacende críticas de retrocesso e desvio de finalidade, pois poderá blindar investigados e frustrar a transparência buscada pela Emenda 35/2001".

A Emenda Constitucional 35/2001 alterou o artigo 53 da Constituição e ampliou as prerrogativas dos parlamentares. Ela reforçou a imunidade e inviolabilidade por opiniões, palavras e votos no exercício do mandato, incluindo proteção contra prisão em determinadas situações. O objetivo foi garantir que deputados e senadores exerçam suas funções sem pressões externas ou retaliações políticas.

Os juristas entendem que a mensagem da PEC é "muito clara": o poder Legislativo não quer, de forma alguma, ser tutelado, controlado ou ter suas atividades reguladas pelo Judiciário.

Histórico da PEC da Blindagem

A PEC 3/2021 foi presentada pelo deputado federal Celso Sabino (União Brasil-PA), que atualmente é ministro do Turismo, e recebeu 186 assinaturas de apoio de deputados federais, sendo maioria de partidos do Centrão e da Direita, grupo que critica o poder do STF e busca maior autonomia para o Legislativo.

O texto foi apresentado diante da repercussão da prisão do ex-deputado federal Daniel Silveira – preso em flagrante em 2021 após publicar um vídeo com críticas e ameaças aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), além de defender o Ato Institucional nº 5 (AI-5), período mais violento da ditadura militar. Na época, a PEC chegou a ser pautada em plenário, mas não avançou.

O tema foi discutido na quarta-feira (27) entre o presidente da Câmara dos Deputados e os líderes da Casa antes de ir para o plenário. Porém, após um longo período de reunião, não se chegou a um acordo sobre o texto relatado pelo deputado federal Lafayette de Andrada (Republicanos-MG).

Jabuti

A PEC da Blindagem é considerada um “jabuti” por incluir regras que não têm relação direta com o tema principal da proposta. A expressão “jabuti” é utilizada no Legislativo para descrever dispositivos inseridos em propostas que desviam do objeto original, muitas vezes para favorecer interesses específicos.

No caso em questão, a PEC se apresenta medidas cautelares contra parlamentares, mas na prática introduz uma espécie de proteção ampla para políticos, interferindo em investigações, prisões e processos judiciais.

Líder do PL descartou prioridade da PEC para o partido 

Nesta quinta-feira (28), o líder do Partido Liberal na Câmara dos Deputados, Sóstenes Cavalcante (RJ), informou que a proposta não será mais uma prioridade para o partido na Casa. Em entrevista coletiva, Sóstenes disse que não irá se esforçar se parte dos parlamentares do Congresso Nacional acham “que fortalecer prerrogativa é um desserviço”.

“Eu não vou ficar me sacrificando em detrimento de alguns que não querem”, afirmou Sóstenes.

Além do líder do PL, o presidente do MDB, deputado Baleia Rossi (SP), usou suas redes sociais para se manifestar contrário tanto à PEC da Blindagem quanto à PEC 333/2017, que determina o fim do foro por prerrogativa de função para parlamentares. “Sou contra qualquer tipo de blindagem para parlamentares e mudanças no foro”, escreveu Baleia Rossi.

Apesar da falta de apoio do PL anunciada por Sóstenes e por Rossi, Gabriela Santana avaliou para a reportagem que a oposição seguirá pressionando para que haja uma votação do texto na próxima semana.