Por: Affonso Nunes

A violência que pode igualar antagonismos

'O Motociclista no Globo da Morte' é o segundo monólogo interpretado por Eduardo Moscovis | Foto: Catarina Ribeiro/Divulgação

A natureza obscura da violência humana ganha o palco no monólogo inédito "O Motociclista no Globo da Morte", parceria entre Eduardo Moscovis e o diretor Rodrigo Portella. O espetáculo, com texto do dramaturgo Leonardo Netto, questiona se a violência é inerente à condição humana ou produto das relações sociais, provocando o público ao diluir as fronteiras entre vítima e algoz, civilizado e selvagem.

 

Ator se viu numa identificação perturbadora

Eduardo Moscovis: 'O que mais me cativou foi perceber que o protagonista é um homem que tem uma vida correta, pacífica, mas que pode se igualar ao seu antagonista - um homem vil em todos os aspectos' | Foto: Catarina Ribeiro/Divulgação

Veterano com mais de três décadas de carreira e protagonista de sucessos televisivos como "Pecado Capital" e "Alma Gêmea", Moscovis encena seu segundo monólogo após "O Livro" (2011), de Newton Moreno. O ator, que recentemente foi premiado como Melhor Ator no Festival de Brasília e no Los Angeles Film Festival, encontrou no texto uma identificação perturbadora com o protagonista. "O que mais me cativou foi perceber que o protagonista é um homem que tem uma vida correta, pacífica, com quem eu facilmente me identificaria, mas que pode se igualar ao seu antagonista - um homem vil em todos os aspectos - ao cometer um ato de extrema violência", revela Moscovis, que está há dois anos em cartaz com a comédia "Duetos", vista por mais de 200 mil pessoas.

A gênese da obra remonta a uma experiência perturbadora vivida por Leonardo Netto há alguns anos, quando assistiu inadvertidamente a um vídeo de extrema violência em uma rede social. O dramaturgo se questionou não apenas sobre os motivos que levam alguém a cometer atos violentos, mas também a filmá-los, postá-los e, principalmente, o que leva outros a curtir esse tipo de conteúdo. "A espetacularização, a romantização e a banalização da violência, exacerbadas com a multiplicação de câmeras e da internet, talvez nos torne mais insensíveis a ela", reflete o autor, premiado de textos como "A Ordem Natural das Coisas", vencedor do Prêmio Cesgranrio 2018, e "3 Maneiras de Tocar no Assunto", que lhe rendeu múltiplas premiações.

A narrativa se desenvolve através do relato detalhado de uma história trágica vivida pelo protagonista em um dia aparentemente comum, enquanto almoçava em um bar que costumava frequentar.

Durante o processo de escrita, Leonardo passou a imaginar Moscovis como protagonista, lembrando-se da parceria em "Corte Seco" (2010). O título surgiu como metáfora da iminência do desastre. "Assim como no globo da morte, nós vivemos tentando nos desviar da catástrofe o tempo inteiro", explica o dramaturgo, que admite ter enfrentado dificuldades durante a criação: "Foi muito perturbador assistir, mas escrever também foi difícil, incômodo. Muitas vezes eu tive que parar".

Macaque in the trees
Rodrigo Portella: 'Não há partidarismo, não se nomeia esquerda ou direita, mas claramente os personagens que estão envolvidos diretamente no crime se enquadram na dicotomia político-ideológica em que a sociedade brasileira está mergulhada' | Foto: Dalton Valério/Divulgação

Rodrigo Portella, diretor com 32 anos de carreira e reconhecido internacionalmente por sucessos como "Tom na Fazenda" - que obteve grande sucesso no Festival de Avignon e realizou turnê por mais de 30 cidades europeias -, optou por uma encenação extremamente minimalista. O diretor é um dos mais premiados da cena teatral brasileira, com obras como "As Crianças" e "Ficções" laureadas pelos principais prêmios nacionais.

"Para mim, o espetáculo acontece na cabeça do espectador. Qualquer elemento concreto no palco seria uma distração para o mergulho para dentro da história, que é muito poderosa", define Portella. A escolha estética busca enfatizar o aspecto comum do acontecimento narrado, que poderia ocorrer com qualquer pessoa - um evento extraordinário em um lugar ordinário, executado por um homem ordinário.

Eduardo Moscovis elogia a parceria com Portella. "Ele é um diretor-criador, um criador de cena, ele pensa no espetáculo, pensa no teatro de uma forma muito genuína e potente, não só na forma de contar a história, do ponto de vista do narrador, mas de contar a história do espetáculo". A trilha musical de André Muato, o figurino de Gabriella Marra e a iluminação de Ana Luzia de Simoni reforçam a proposta minimalista, criando uma relação íntima entre ator e espectador.

"Não há partidarismo, não se nomeia esquerda ou direita, mas claramente os personagens que estão envolvidos diretamente no crime se enquadram na dicotomia político-ideológica em que a sociedade brasileira está mergulhada", observa Portella.

SERVIÇO

O MOTOCICLISTA NA GLOBO DA MORTE

Teatro Poeira (Rua São João Batista, 104, Botafogo)

Até 14/12, quinta e sábado (20h) e domingos (19h)

Ingressos: R$ 120 e R$ 60 (meia)