Por: ALDO TAVARES

LINHAS DE FUGA: Deus

Imagem criada com a IA Flux Pro | Foto: Imagem criada com a IA Flux Pro

Se somos ateus, não confiamos em Deus; isso, porém, não impede pensar Deus. No sentido de motivar a beleza de pensar o Ser absoluto, a fé em Deus é desnecessária, pois o que se exige é a elaboração de uma linguagem nada fácil para o senhor Senso Comum. Deus, atividade do intelecto e passividade da fé.

Quando subimos ao Mosteiro de São Bento, assistimos à mesma missa ou à repetida liturgia que há séculos não foge ao "ser" do sagrado, que é não se "misturar" com vulgaridade do mundo. Em sua origem etimológica, isto é, em sua origem verdadeira, "sagrado" deriva do verbo "separar", ou seja, porque ser e não-ser não se misturam, deve-se buscar a Unidade, e o canto gregoriano representa a busca por essa unidade, pois a parte não está se acima do todo.

Vamos agora ao terreiro de umbanda ou candomblé. Ainda que as partes manifestem-se com certo grau de individualidades, o todo é mantido, o que significa dizer que as partes não fazem o que querem conforme o desejo de cada uma delas. No terreiro, ao sabor do ponto cantado, o corpo nega a retidão ou a rigidez do corpo em uma missa beneditina; mas, mesmo assim, o sagrado manifesta-se em seu estado de transe.

Tal qual a missa na igreja, o ritual no terreiro repete-se há séculos, onde - repito - o indivíduo não está acima do todo ou acima da unidade. A princípio, por causa desses dois exemplos, o sagrado implica obediência à ordem sacra, que não mistura "o que deseja meu Eu" com o "ser da unidade-todo". Se a tradição católica significa o texto sagrado escrito e, com efeito, o fiel sentado a escutar a retidão da Palavra, a tradição das religições de matriz africana é cultura ágrafa, cujo saber encarna-se no corpo que escapa à retidão de quem se senta a fim de permanecer atento à Palavra do Senhor.

A tradição do cristianismo é a palavra [escrita], sendo necessário ambiente ordenado para ser lida e interpretada. Não só: necessário haver ótima formação para saber hebraico [Velho Testamento] e grego [Novo Testamento]. Um tipo de cristianismo, no entanto, não apenas nega a origem verbal dos dois Testamentos como nega a exegese e, se não a nega, lê a Palavra do Senhor conforme o desejo do Eu, fazendo com que a Palavra seja o que o Eu quer que ela seja, sem haver relação com etimologias hebraica e grega.

Existem cultos em que o pastor fala contra a Escola de Frankfurt, contra Nietzsche. "O reino", de Gilberto Nascimento, é autópsia do cristianismo negador do sagrado, que, misturando-se com a política, coloca o Eu acima da Palavra.