O Teatro Poeira, em Botafogo, recebe a partir desta terca-feira (9) a terceira temporada de "Jonathan", monólogo que vem consolidando Rafael Souza-Ribeiro como uma das vozes mais potentes da nova dramaturgia brasileira. Após duas temporadas cariocas e uma turnê estadual pelo Sesc, o espetáculo retorna à cidade. Sob direção de Dulce Penna, a montagem acumulou duas indicações ao 34º Prêmio Shell de Teatro, nas categorias Dramaturgia e Direção, confirmando o reconhecimento crítico de uma obra que transcende os limites convencionais do teatro contemporâneo.
A dramaturgia parte de um fato extraordinário: a existência de Jonathan, a tartaruga mais velha do mundo, atualmente com 193 anos e residente na Ilha de Santa Helena, território britânico perdido no Atlântico. Esse animal centenário, testemunha silenciosa de quase dois séculos de história, torna-se o ponto de partida para uma reflexão sobre tempo, memória e resistência que vai muito além de sua longevidade biológica. A partir desse símbolo de permanência, Souza-Ribeiro constrói uma fábula contemporânea que entrelaça a biografia do réptil com a trajetória de outro Jonathan: um jovem negro de 17 anos, tratador de animais, que herda não apenas o nome da tartaruga, mas também o ofício do avô.
O feito desta dramaturgia é como passado e presente se entrelaçam em cena. Enquanto reconstrói a história da ilha, da tartaruga e de sua própria família, o protagonista navega pelas descobertas, sonhos e conflitos típicos da transição para a vida adulta, permitindo que questões históricas sejam vistas na ótica de hoje, revelando como as marcas do colonialismo persistem nas estruturas de desigualdade e violência do presente.
O espetáculo combina autoficção, fragmentos jornalísticos, poesia, humor e elementos fantásticos, uma mistura de registros que revela a natureza fragmentária da memória e da identidade, especialmente quando se trata de reconstituir histórias apagadas ou silenciadas pela narrativa oficial. A dramaturgia de Souza-Ribeiro denuncia o passado colonial, mas propõe uma reescritura ativa da história a partir da perspectiva de quem tradicionalmente foi excluído dela.
A crítica especializada tem destacado a força política e estética da obra. A pesquisadora e crítica teatral Daniele Ávila Small ofereceu uma análise particularmente eloquente. "Jonathan não é alusão nem comentário. É reescritura da História, poema épico anticolonial orgulhosamente corporalizado no rés do chão do teatro, narrado de cor, descalço e em pé, com um sotaque carioca característico de uma juventude periférica que trama sua linguagem na rua e nas redes. Sua capacidade de articulação entre humor, crítica social e ternura explode e submerge um enclave colonial no fundo do Oceano Atlântico. Homero que lute. Rafael é rapsodo latino-americano do século XXI."
A crítica social rigorosa é apresentada com afeto e humor, passando ao largo tanto do panfletarismo quanto de uma melancolia paralisante. O jovem protagonista emerge como figura de resistência não através da revolta explosiva, mas da persistência cotidiana e da recusa em aceitar o silenciamento. Sua linguagem, forjada nas ruas e nas redes sociais, é sua ferramenta para ocupar e ressignificar espaços tradicionalmente negados à juventude periférica.
Sozinho em cena, Souza-Ribeiro assume múltiplas vozes e temporalidades, criando um universo povoado de personagens e memórias que se materializam através de sua presença física e vocal. Essa economia de meios amplifica o poder evocativo do texto, transformando o teatro em espaço de invocação e conjuração de histórias que insistem em permanecer vivas.
"Jonathan" reafirma o teatro como território privilegiado de memória e invenção. o passado não é apenas lembrado, mas ativamente recriado e ressignificado. O protagonista olha para trás não por nostalgia, mas para construir ferramentas de compreensão do presente e imaginação do futuro, colocando em cena a potência de uma juventude que se recusa a ser silenciada.
SERVIÇO
JONATHAN
Teatro Poeira (Rua São João Batista, 104, Botafogo)
De 9/9 a 22/10, às terças e quartas-feiras (20h)
Ingressos: R$ 80 e R$ 40 (meia)