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Reconexão à sabedoria ancestral

Elisa Lucinda e o jovem Gabriel Demarchi estão em 'O Princípio do Mundo' | Foto: Vantoen Pereira Jr/Divulgação

Elisa Lucinda sobe ao palco do Teatro Correios Léa Garcia, no Centro, nesta quinta-feira (4), às 19h, para dar vida à Mãe do Mundo, personagem central de "O Princípio do Mundo", espetáculo inédito que marca os 18 anos da Companhia da Outra. A montagem, que tem dramaturgia da própria Elisa em parceria com Geovana Pires, também diretora da peça, propõe uma reflexão profunda sobre ancestralidade, patriarcado e a força feminina através de uma estrutura inteiramente poética.

A obra parte de um pressuposto provocativo: a primeira criatura humana foi criada por uma mulher. Desenvolvendo essa premissa, o espetáculo se desdobra como um manifesto em favor do matriarcado e contra a orfandade contemporânea dos ensinamentos dos povos originários. "Estamos propondo uma ocupação menos predatória e menos violenta do mundo. É inadmissível que ainda hoje o masculino represente uma ameaça à vida de uma mulher", destaca Elisa Lucinda, que vê na montagem uma convocação para uma cultura antibélica.

A dramaturgia, conta Elisa, surge de um recorte de uma de suas obras, "Aviso da Lua que Menstrua", mas que aborda questões urgentes dos dias de hoje. "Vivemos um momento em que as pessoas não sabem como lidar com as crianças e os adolescentes, e muitos jovens estão órfãos de natureza e contatos presenciais", argumenta. Diante desse cenário, a peça se apresenta, nas palavras da atriz e autora, como "um mosaico de ideias para a construção de uma cultura de paz".

A montagem dialoga diretamente com as tradições africanas nas quais o conhecimento ancestral é transmitido através de encontros ritualizados. Como lembra o ditado africano citado por Elisa, "quando um ancião morre, morre uma biblioteca". E essa filosofia permeia toda a dramaturgia, que busca fortalecer as raízes culturais para que o futuro possa florescer. "Para viver a Mãe do Mundo tivemos que atravessar essa ancestralidade, mergulhar num começo anterior à narrativa oficial que conhecemos", explica a atriz, que se diz em "estado de gratidão" com seus fundamentos ao interpretar essa personagem.

O processo criativo da peça seguiu um caminho pouco convencional, com a dramaturgia sendo construída simultaneamente aos ensaios. Geovana Pires, que assina a direção, descreve essa metodologia como uma "entrega absoluta", comparando-a a uma conexão espiritual com o teatro. "É como se fôssemos guiadas por esse deus do teatro que vai dizer como espiritualmente o espetáculo deve existir", afirma a diretora, destacando como essa abordagem deixa tudo "vivo, menos engessado".

Uma característica marcante de "O Princípio do Mundo" é sua estrutura totalmente rimada, uma primeira experiência para Elisa Lucinda. "É a primeira vez e é de propósito. Queremos que o texto seja uma estrela. Acredito na palavra como ouro, assim vejo a força da cultura oral", justifica a dramaturga, que vê nessa escolha estética uma forma de potencializar o poder encantador da palavra. Embora assinado principalmente por ela, o texto incorpora versos de Geovana Pires e até mesmo um poema de Gabriel Demarchi, o jovem ator que faz sua estreia profissional na montagem.

Gabriel, de apenas 14 anos, não apenas divide a cena com Elisa Lucinda, mas também embala trechos da peça tocando kamale ngoni, instrumento conhecido como harpa africana. O jovem ator aprendeu a tocar o instrumento em duas semanas especialmente para o espetáculo. "Foi um desafio rápido, mas muito gostoso, porque o som tem tudo a ver com o clima da peça e me conectou ainda mais com a história", conta Gabriel.

O espetáculo funciona também como um elogio à velhice e à sabedoria ancestral, contrastando com uma sociedade que frequentemente desvaloriza os mais velhos. "Nas sociedades indígenas e africanas o velho é considerado um sábio. Em sua volta, toda aldeia se reúne para desfrutar de seu saber e o melhor, o jovem gosta do abrigo dessa sabedoria", observa Elisa, que convida o público a "confiar no tesouro que o ser humano é, com seus recursos e saberes antigos que moram em nossa memória".

Com uma proposta que mescla reflexão política, celebração cultural e experimentação estética, "O Princípio do Mundo" se apresenta como um convite à reconexão com fundamentos que a modernidade ocidental relegou ao esquecimento. "A natureza é uma escola que não fecha", afirma a atriz.

SERVIÇO

O PRINCÍPIO DO MUNDO

Teatro Correios Léa Garcia

(Rua Visconde de Itaboraí,

20 - Centro)

De 4 a 27/9, de quinta a

sábado (19h)

Ingressos: R$ 40 e R$ 20 (meia)