A delicada relação em sala de aula

Espetáculo 'Antes da Aula' narra experiências de alunos e professores baseadas nas vivências de Aline Oliveira

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Atriz e professora, Aline Oliveira resgata em cena suas vivências em sala de aula

Uma professora pede aos seus alunos inquietos para escreverem cartas contando sobre suas vidas. Este é o ponto de partida de "Antes da Aula". Propostas como um exercício de aproximação, as cartas foram, de fato, escritas por alunos de uma escola municipal em que Aline deu aula, nas imediações da Mangueira. Os textos que narram experiências e o cotidiano dos jovens, somados a materiais autobiográficos da atriz/professora, deram origem à dramaturgia de Felipe Barenco.

A peça é uma autoficção com atuação solo de Aline, que interpreta mais 20 personagens, entre Marília, a professora de artes que encara "a turma mais difícil do colégio", os alunos com quem ela vive um ano inesquecível, e outras figuras da comunidade escolar.

Contemplado pelo Programa Funarte Aberta 2024, o espetáculo volta à cena para uma curta temporada no Teatro Glauce Rocha depois de circular por equipamentos públicos da cidade.

"Antes da Aula" retrata os desafios que se apresentam no contexto escolar, onde se agudizam os conflitos, as mazelas sociais e a beleza das conexões humanas em meio a toda sorte de dificuldades. A peça traz à tona questões como a saúde mental dos professores, a relação da escola com os saberes e vivências dos educandos, além da potência dos alunos como produtores de cultura e protagonistas no fruir artístico.

O texto começou a ser desenvolvido em 2020, durante a pandemia, quando Aline trabalhava numa escola nos arredores da Mangueira e encontrava muitas dificuldades para se comunicar com uma turma. "A proposta desse trabalho é trazer um pouco da realidade da escola e das questões sociais que se evidenciam na sala de aula. Eu tinha muita necessidade de mostrar, por meio do teatro, a intensidade e a profusão de experiências, histórias de vida, as belezas e tragédias humanas que passavam por mim diariamente. Acredito muito no potencial dos jovens, na sua inventividade, criatividade, na pulsão de vida dos corpos inquietos. Queria muito trazer isso para a cena", conta Aline.

Um ponto destacado na montagem é a questão da saúde mental dos professores. Ela própria, muitas vezes, se viu abalada pelo que vive no cotidiano do ensino. "O corpo se organiza, se desorganiza e se reorganiza o tempo todo", diz.

A Síndrome de Burnout afeta uma parte considerável dos profissionais de educação da rede pública. Com uma das maiores redes de escolas do país, o Rio de Janeiro é um dos municípios com mais casos de afastamento de professores por conta de problemas de saúde advindos do ambiente de trabalho. Pelo fato de a síndrome não exigir uma notificação obrigatória, o Ministério da Saúde não contabiliza com precisão o número de trabalhadores brasileiros diagnosticados com a doença.

No capítulo 3 do livro "Síndrome de Burnout em professores da rede pública do Estado do Rio de Janeiro", as pesquisadoras Lais Soares Coutinho e Vanessa Carine Gil de Alcantara apontam uma série de fatores que afetam a saúde do profissional de educação. O corpo docente atuante na rede pública de ensino se depara com uma série de fatores que dificultam e, em alguns casos, chegam a impossibilitar as atividades nas salas de aula. A sobrecarga mental e emocional é fato.

"O processo de criação do espetáculo nos permitiu uma experiência rara: fazer uma arqueologia da memória da Aline a partir dos contos que ela mesma escreveu sobre suas experiências como professora. Foi uma honra e uma grande alegria ter sido convidada para fazer parte desse processo, e presenciar, a cada ensaio, o quanto a memória do vivenciado pela professora em sala de aula permanece viva em inúmeras camadas e nutre a potência da atriz no palco", relata Florência Santángelo, codiretora do espetáculo.

Segundo Julio Adrião, que também dirige a peça, "Antes da Aula" é o reflexo de uma experiência real de uma professora, que é também atriz e escritora, e que entendeu que tinha diante de si uma missão. "Entendi que a missão de Aline era um compromisso também meu, já que a cena embrião havia sido forjada em uma oficina que ministrei em 2019. Assim, assumimos essa colaboração e, ao longo dos últimos três anos, o processo foi sendo gestado", conta.

O autor do texto, Felipe Barenco, reforça que o tema é cheio de sutilezas e que foi necessário buscar um contraponto: "O que mais queremos mostrar é a pulsão de vida que move alunos e professores no dia a dia, naquele contexto social. A violência está ali, tentando pular o muro da escola quase o tempo todo. E isso, todo mundo já sabe. Mas, como lançar um olhar diferente para o que é conhecido, mas muitas vezes tornado invisível, pela sociedade. Este foi o nosso desafio", diz.

E como é, para Aline, interpretar uma professora no palco sendo professora na chamada vida real? "Para mim, inicialmente, foi difícil marcar essa diferença, mas a personagem foi acontecendo naturalmente, à medida em que o processo de criação do espetáculo foi avançando. Fui buscando sutilezas corporais e algum traço de ingenuidade na personagem, muito comum quando começamos um trabalho novo no universo da escola pública. Foi nesse frescor de uma professora iniciante que me inspirei para construir a personagem. Quis buscar tocar as pessoas no lugar do sensível, porque falamos de histórias que me atravessam no dia a dia. Ao viver os corpos de todos esses personagens, pude reencontrar o meu corpo de professora", acredita.

SERVIÇO

ANTES DA AULA

Teatro Glauce Rocha (Av. Rio Branco, 179) | Até 28/11, quartas e quintas (19h)

Ingressos: R$ 40 e R$ 20 (meia)