Há espetáculos raros, capazes de contar uma história, no modelo de aristoteliano - com começo, meio e fim -, construir um tema em voga de forma muito particular e inteligente. E, ao mesmo tempo, entregar uma encenação com todos os elementos de artes performáticas em perfeita harmonia: luz, atuação, figurinos, cenário, trilha sonora. E tudo isso com apoio de um texto com tempo correto, inteligente, com diálogos rápidos. "És tu, Brasil?", em cartaz no Futuros - Arte e Tecnologia, é uma dessas epifânias de ótimo teatro.
O premiado 1COMUM Coletivo, fundado por Fernando Nicolau, diretor e iluminador da montagem que tem a dramaturgia assinada por Thiago Scarpat,compôs em elenco para contemplar a matriz étnica deste país, oferecendo à cena quatro intérpretes, que desempenham com total eficiência muitos papéis e que remontam à pluralidade do Brasil: Giovanna Nader, Igor Pedroso, Lucas Sampaio e Luiza Loroza.
Assim, o encontro destes corpos e matrizes geram narrativas e símbolos que, munidos do vocabulário socioambiental (povos originários, elevação do nível do mar, aumento de temperatura global, racismo ambiental), revisam as histórias do Brasil e revelam a própria trajetória plural e contraditória desta nação.
Giovanna - que, além de atriz, é uma das maiores comunicadoras socioambientais do país, influenciadora digital e ativista climática - retorna ao teatro após sete anos neste espetáculo, do qual é idealizadora junto de Fernando e Thiago. Como todos, Giovanna nos aponta para a emoção dos sustos, das perplexidades, das raivas, das descobertas que podemos ter de um verdadeiro Brasil.
As vozes que ouviremos sobre o processo criativo e seu significado vem dos quatro atores que falaram com exclusividade ao Correio respondendo, cada um, as mesmas perguntas.
Como foi o processo de criação dos personagens para "És tu, Brasil?"
IGOR PEDROSO - Foi intuitivo, real, aberto, com muitas vivências pessoais conectadas ao texto e de trocas com o coletivo para chegarmos em lugares que fizessem sentido para o processo. Sempre buscando referências que fossem próximas a mim e a minha realidade, do passado e do presente. Intenso, vulnerável e desafiador.
LUCAS SAMPAIO - Para mim, o processo foi uma terra fértil para minha imaginação, desejos, inquietações, experimentações e pesquisas. Tudo isso aliado ao processo da sala de ensaio, encontros, repetições e provocações fizeram com que, de fato, nascessem os(as) personagens.
GIOVANNA NADER - Foi bastante intenso, uma grande busca em personagens reais do nosso Brasil profundo.
LUIZA LOROZA - Primeiro e principalmente, no meu caso - se deu na sala de ensaio, na relação com os colegas e as provocações do diretor. Me senti bastante livre para propor caminhos extracotidianos e muito desafiada a encontrar uma voz, uma estrutura corporal, um tempo específico pra cada um dos 12 personagens. Também busquei, com a ajuda da direção referências de pessoas reais, tais como Estamira, Stella do Patrocínio, e também referências da ficção como Bibiana de Torto Arado.
O que você sente ao fazer a cena da Carta de Pero Vaz de Caminha, em especial quando diz a frase "Vocês não pediram licença"?
IGOR PEDROSO - Sinto raiva; sentimento o qual transformo em força para contar essa história.
LUCAS SAMPAIO - Licença é uma palavra muito nobre para mim. Nesse momento, sempre me lembro o quão o passado construiu e constrói o presente em que vivemos. Lembro dos meus ancestrais.
GIOVANNA NADER - Me sinto triste, envergonhada, ao mesmo tempo com raiva. Ali temos a noção de que o país foi construído desde o inicio em cima do genocídio dos povos originários.
LUIZA LOROZA - Uma grande contradição habita meu ser. Ao mesmo tempo um terror de trazer ao palco a história nua e crua de povos dizimados e escravizados, a euforia de encenar de forma a tensionar os acontecimentos num jogo intenso com os atores, o som, a luz e o palco - uma triste conclusão que justifica os caminhos do Brasil até aqui. O Brasil começa (sob o ponto de vista do colonizador) na invasão, na destruição - mas essa terra aqui é ancestral, tem raiz.
SERVIÇO
ÉS TU, BRASIL?
Futuros - Arte e Tecnologia (Rua Dois de Dezembro, 63 - Flamengo)
Até 27/10, se sexta a domingo (19h) | Ingressos: R$ 60 e e R$ 30 (meia-entrada / meia-entrada solidária, doando 1 Kg de alimento não-perecível)