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Bruzundanga, um país com jeito de Brasil

'Bruzundangas' usa elementos satíricos que bebem diretamente do teatro de revista | Foto: Roberto Carneiro/Divulgação

Quando Renato Carrera e Dani Ornellas decidiram oficializar sua companhia de teatro, o nome ainda não havia surgido - e nem tampouco o texto que faria essa estreia. Lima Barreto (1881-1922), então, se apresentou, saltando o livro "Os Bruzundangas" da prateleira de uma livraria para Renato, que leu a obra, se apaixonou e decidiu montá-la. Assim começou a história que deu nome à Bruzun Company, composta ainda por Hugo Germano e Jean Marcell Gatti, e os direcionou ao musical "Os Bruzundangas", montagem inédita dirigida por Dani e Renato em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil.

Primeira adaptação da célebre literatura de Lima para o teatro, a peça é uma comédia satírica que bebe da fonte do teatro de revista, apresentando a vida brasileira nos primeiros anos da Primeira República com números de vedetes, questões políticas e canções, unido a uma dramaturgia que foi formatada através de várias crônicas sobre o mesmo assunto: a temática social brasileira sob um viés político.

Bruzundanga é um país fictício, com o qual o nosso Brasil tem afinidades - diversos problemas sociais, econômicos e culturais. Lima Barreto o descreveu como uma jovem República que lutava num ambiente de colapso do modelo escravocrata embora ainda persistisse o predomínio dos grupos ligados à grande lavoura. Um país onde proliferavam elites incultas que dominavam o povo. Racismo e pobreza são duas de suas muitas mazelas.

Em cena, os quatro atores cantam, dançam e interpretam suas aventuras através da ironia tipicamente carioca, embaladas por canções originais cantadas ao vivo. "Este texto endossa uma questão muito nossa, da nossa língua, nossa brasilidade, nossa realidade, e com humor. Lemos o livro inteiro, juntos e em voz alta, pra entender o que daria pra transformar em dramaturgia a partir de um livro que é composto por crônicas do começo do século XX. Trabalhamos sempre em cima do ator e da palavra, compreendendo a fala daquela época, realizando uma pesquisa consciente do que falamos em cena. É mágico montar este texto e ter sua encenação estreando nos palcos do CCBB, que fica numa região onde o Lima Barreto viveu. Andamos pelas ruas da região pensando que ele circulava por aqui, como nós fazemos hoje. É a mesma ambiência, mas 100 anos depois", observa Carrera.

Publicada postumamente em 1922, a obra de Lima contempla, sobretudo, a temática social, privilegiando os pobres, os boêmios e os arruinados, assim como a sátira que criticava de maneira sagaz e bem-humorada os vícios e corrupções da sociedade e da política. E este perfil veio ao encontro da demanda da companhia, que busca mostrar Lima Barreto de uma forma que ele não costuma ser mostrado.

"Não vemos uma foto do Lima sorrindo, por exemplo, só se fala que ele era alcóolatra e coisas do tipo, sendo que ele é um dos nossos maiores escritores. Na minha infância eu passava com meus pais pela porta do CCBB sem adentrar o espaço, que parecia não ser feito para pessoas como nós. Eu sou uma mulher preta e hoje estar estreando na direção teatral, com esta peça e neste teatro, sinto como um reforço do meu propósito de dar voz aos meus pais, que hoje já não estão aqui em matéria, e a tantas outras pessoas pretas e indígenas que foram enterradas no entorno deste prédio e nele não puderam entrar. É muito significativo pra mim", pondera Dani Ornellas.

Parceria póstuma

À frente da direção musical, Maíra Freitas traz um colorido à encenação, onde imprime seu ritmo para as letras de... Lima Barreto. "De todas as letras, a única composta por mim é a que abre a montagem. Todas as demais foram tiradas de frases do livro, buscando a rima e a coerência de ideias exprimidas por Lima", revela Carrera. "E quando a gente fala em musical o pensamento vai na Broadway, né? Mas como podemos pensar nisso se a terra primeira, onde nasceu a música, foi a África, território onde, até hoje, as crianças trabalham o movimento corporal desde muito cedo? Então desconstruir a ideia de um musical eurocêntrico e americano, e conseguir fazer a música brasileira ressoar em corpos brasileiros me interessa como musical", complementa Ornellas, que acredita que as canções de Maíra Freitas respaldam esta ideia.

"Eu gosto de fazer a música partindo da letra, já temos alguma coisa resolvida e vamos ajeitando pra caber na música. A ideia está ali e o desafio é escolher as palavras mais importantes, o que vamos sublinhar, onde a melodia fica mais aguda ou mais grave, onde acontece aquele momento que faz as pessoas pensarem. E várias músicas da peça tem isso. Pra mim, música é educação, é o rito mais fácil pra ensinar. Falar simples, falar pouco, fazendo todo mundo cantar e entender o que você quer", pontua Maíra, que levou em conta ritmos da época em sua composição. "Tem momentos de ser bem temporal, mas passando pelos ritmos brasileiros e passando por esses 100 anos de ritmos brasileiros, assim como tem o livro de Lima Barreto", destaca a diretora musical, cantora e compositora.

SERVIÇO

OS BRUZUNDANGAS

Teatro II do Centro Cultural Banco do Brasil (Rua Primeiro de Março, 66 - Centro)

Até 19/5, de quinta a sábado (19h) e domingo (18h)

Ingressos: R$ 30 e R$ 15 (meia)