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'O Anima Mundi era nosso Natal fora de época'

Por Rodrigo Fonseca

Especial para o Correio da Manhã

Aos 51 anos, formado pela Escola de Belas Artes da UFRJ na década de 1990, Marcelo Marão - também chamado de "O Walt Disney de Nilópolis" - rodou 14 filmes, que participaram de 634 festivais em mais de 40 países, tendo recebido 120 prêmios. É uma média que muitos dos nossos medalhões da ficção live action e do documentário nunca alcançaram.

Neste fim de semana ele exibe em telas portuguesas, no menu da Monstra: Festival de Animação de Lisboa, o primeiro longa-metragem de sua carreira. "Bizarros Peixes Das Fossas Abissais" narra os feitos de uma super-heroína (com a voz de Natalia Lage) que ao gritar "Minha bunda é um gorila!" vê sua região glútea se transformar num gorila gigante.

"Essa será a minha seiscentésima trigésima quinta participação em um festival. Sou um velhinho!", brinca o realizador de curtas cults como "Até a China" (2015).

Neste papo, ele fala sobre a experiência em outro formato e cobra o sumiço do maior evento do setor na América Latina, o Anima Mundi, interrompido em 2019, na gestão Bolsonaro.

De que maneira o teu longa se encaixa na velha expressão "desenho animado"? Essa expressão ainda tem uso hoje?

MARCELO MARÃO: "Desenho Animado" é a terminologia para a técnica de animação 2D que era a mais popular antigamente, na época do acetato e da truca. Hoje é tão rara essa proposta e tão comum o desenho no tablet ou (softwares como o) Cintiq com uma caneta digital, que o termo mais popular é "tradigital". Todavia, sendo o ancião defasado que sou, ainda desenho a lápis no papel. Isso significa que, no nosso caso, o termo absolutamente correto para a técnica utilizada em "Bizarros Peixes Das Fossas Abissais" é, de fato, desenho animado".

Quantos longas animados o Brasil já fez? Quantos, além do seu estão por vir?

Em pouco mais de um século de produção de animações brasileiras, iniciadas em 1917 com "O Kaiser", foram realizados aproximadamente cinquenta longas animados, com alguns pioneirismos a serem destacados. No ano passado, pela primeira vez em todos os tempos, um número recorde de quinze longas de animação brasileiros ficaram prontos no nosso pais, com admiráveis estreias nacionais, em circuito exibidor. No ano passado, ficaram prontos os primeiros longas de animação de Belo Horizonte, de Pernambuco, de Goiás e do Ceará. Enquanto isso, outros trinta e seis longas estão em produção no Brasil neste momento. Não são projetos, são filmes já efetivamente em alguma etapa de produção, com uma admirável diversidade geográfica, de gênero e de estilos.

Qual é a noção de heroísmo que cabe num filme como "Bizarros Peixes..." a se julgar pelo seu humor irônico?

Este e um projeto bizarramente pessoal, significando que o que é nonsense para o público tem muito simbolismo para mim. Exibi única e exclusivamente para a família, que aparece muito sutilmente em algumas cenas e chorou em cenas de ação por razões muito específicas. O tom e o teor da narrativa misturam a ação de curtas como "O Arroz Nunca Acaba", a bizarrice de "Engolervilha"e o caráter autobiográfico de "O Anão Que Virou Gigante", mas digo apenas sobre a intenção emocional inicial. Na prática - sendo a primeira vez que estruturo uma narrativa de 75 minutos - o resultado foi uma neófita experiência minha em lidar com os mesmos personagens durante anos. Isso foi o mais divertido e inédito pra mim, uma vez que, mesmo nos curtas, é raro poder conviver durante mais de oito ou nove meses com o mesmo universo de personagens. Pude me divertir e me aprofundar nas facetas de traco e estilo do design dos personagens, assim como no acting e nas soluções de movimentos de cada um, diretamente vinculadas ao desenvolvimento dos personagens, que pode ser mais gradual e sutil do que nos curtas. Foi com muita tristeza e saudades que animei a última cena da protagonista, da tartaruga e da nuvem. Foram efemérides festivas e saudosas na última cena a ser intervalada, a derradeira cena a ser escaneada, o ultimo frame a ser pintado e renderizado com o cenário.

Qual foi a primeira animação que fisgou o seu olhar e te fez investir no setor?

Minha paixão maior, historicamente, no quesito consumir sempre foram quadrinhos e literatura, embora a minha maior gana artística, no fazer, sempre tenha sido a animação. Era tragado por Asterix, Tintim, assim como por Verissimo e Fernando Sabino. Sem internet nem streaming nos anos setenta, assistia às séries da Hannah-Barbera na TV e longas da Disney no cinema. Todavia, foi ao frequentar o Anima Mundi, desde sua primeira edição, em 1993, que mudei totalmente minha visão ao conhecer filmes com narrativas e visuais tão ecléticos e distintos de tudo que eu havia visto durante toda a adolescência, vindos de múltiplas culturas do mundo. Bill Plympton, com "The Tune", e Ennio Torresan, com "El Macho", foram devastadores ao animar tão virtuosamente a lápis no papel, pintando com lápis de cor gags inacreditavelmente originais, adultas e hilarias.

O que a Monstra representa hoje na cena da animação?

Ela é uma das mais ecléticas e representativas janelas da animação mundial atualmente, em estilo, técnica, história e representatividade.

Que falta faz o Anima Mundi, suspenso desde 2019?

É um evento essencial e presente em todas as facetas e braços da animação brasileira desde 1993. Sua falta nos deixa órfãos e incompletos. Era a nossa casa. Era o nosso Natal fora de época. Era a mesa do bar, onde colocávamos rostos naqueles traços e estilos dos filmes. Foi onde formamos famílias (muitas vezes, literalmente). Mas sou auspicioso de que vai voltar. Teremos novamente nosso Natal, nossa casa, nossa família. Vai voltar.

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