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Educação pela concha

Por Rodrigo Fonseca

Especial para o Correio da Manhã

Existe um conceito comercial no circuito exibidor batizado por Hollywood como sleeper que se usa para definir longas que chegam sem muito alarde midiático, mordem fatia fiel de público, não a largam e ficam em cartaz... ficam... ficam... mês após mês, sem se deixar abater por concorrentes mais formulaicos. Este ano, o "dorminhoco" (tradução literal do termo) da vez é "Um Lugar Bem Longe Daqui" ("Where The Crawdads Sing"), drama com cara de novela das seis e cheio de retidão em suas propostas estéticas aparentemente simples no trânsito pelo folhetim.

Seu chamariz é a matéria-prima: o romance homônimo de Delia Owens, mega-seller, que vendeu 2 milhões de exemplares lá fora, e brilha nas livrarias do Brasil. Livro daqueles de dar porre e grudar o leitor em suas páginas. A mesma coisa se passa com o filme, vitaminado pela imolação em cena de sua protagonista, Daisy Edgar-Jones, conhecida pela minissérie "Normal People". O êxito de sua consagração popular nas telonas se mede por um faturamento que beira US$ 62 milhões.

Não por acaso, "Um Lugar Bem Longe Daqui" vai ganhar uma projeção no Festival de Locarno nesta sexta-feira. Sua presença na 75ª edição de uma das mostras mais prestigiadas do mundo é parte do interesse de seu diretor artístico, o crítico Giona A. Nazzaro, em narrativas de gênero - no caso, uma mistura de melodrama com thriller jurídico - e em trama pautadas pelo empoderamento feminino. E a personagem delineada na prosa de Delia é um primor para se retratar a resiliência, sobretudo sob a direção segura de Olivia Newman.

A realizadora de "Minha Primeira Luta" (2018) dá ao enredo pinçado do livro de Delia uma cobertura de açúcar folhetinesca, a fim de equilibrar toda a dor que sua personagem central encara. Sua heroína é uma jovem catadora de mexilhões, Kya (Daisy Edgar-Jones), criada num pântano por um pai violento cujo cinto marca o rosto de seus filhos e de sua mulher. Kya é abandonada gradualmente pela mãe e por seus irmãos, até ver o próprio pai sumir no mapa, quando ainda é criança. Com a ajuda de um casal de comerciantes, a garota se vira nos 30, solitária, analfabeta, educada apenas pela natureza, em sua relação com conchas. Vai aprender a ler com o filho de um pescador e cria anticorpos à brutalidade do mundo em sua relação com conchas e seres aquáticos.

No desenho investigativo do memorialismo de Olivia Newman, ao dirigir o texto de Delia, Daisy explode na tela com uma vitalidade estonteante em sua atuação, sem derrapar um segundo sequer em caricaturas. Dosa fragilidades e fúria com equilíbrio. A edição joga com a memória, o passado e o presente de maneira sinuosa, criando uma tensão de prender o espectador na poltrona e jogar a chave fora.

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