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Céu de brigadeiro pro cinema suíço

Por Rodrigo Fonseca

Especial para o Correio da Manhã

Ao organizar a seleção competitiva da 75ª edição do Festival de Locarno, iniciada ontem com "Trem-Bala", thriller protagonizado por Brad Pitt, o crítico Giona A. Nazzaro, curador do evento suíço, declarou ao Correio da Manhã seu cuidado em valorizar a "prata da casa", selecionando pérolas de seu país para diferentes mostras:

"Temos hoje, no cinema suíço, toda uma geração que está conectada com o mundo, além de suas fronteiras, criando, de maneira talentosa e corajosa, filmes que expressam inquietação local. Há uma comédia LGBTQI suíça anarquista e insurgente que incluímos na competição: um filme de Valentin Merz chamado 'De Noche Los Gatos Son Pardos'. E há muito espaço para Suíça na sessão de curtas, neste momento de consagração de nosso país pelo mundo", disse Nazzaro, referindo-se à carreira internacional de um longa daquela nação que, atualmente, faz barulho em diferentes circuitos da Europa: "Drii Winter" ("A Piece of Sky"), de Michael Koch.

Laureado na Berlinale com uma menção especial, em fevereiro, o drama devastador de Koch tem entrado nas listas dos melhores filmes de 2022 de críticos de todo o Velho Mundo. Nele, o ator e diretor desconstrói a paisagem de postal dos Alpes ao narrar, numa estrutura de tragédia grega, as angústias de um casal diante de uma doença terminal. Um casal num mundinho rural, onde os animais são parte afetiva da vida dos protagonistas, encarnados por atores não profissionais, ligados ao trabalho com gado.

"Quis filmar num lugar que parecesse o Paraíso, para revelar suas entrelinhas, expondo toda a fragilidade humana em sua paisagem", disse Koch ao Correio da Manhã.

Orientada por Koch a despistar qualquer indício de cartão-postal a ser encontrado a seu redor, na exuberância dos Alpes, a fotografia de Armin Dierolf busca sempre evitar planos abertos, e se dedica a detalhes. Não existem um esmero em se ressaltar a exuberância da vida alpina. As exceções de esplendor estão nas sequências em que o realizador de "Marija" (2016) precisa mostrar como é o trabalho de seus personagens nas montanhas, como funciona o fluxo de transporte de arbustos por meio de teleféricos e como se dá o cuidado com o gado. Todo o elenco é de intérpretes sem experiência profissional. Os protagonistas são Michèle Brand, como a funcionária dos Correios e atendente de um bar Anna, e Simon Wisler, escalado como o vaqueiro Marco. São vidas pautadas por uma aparente simplicidade e por repetições.

Acompanhamos um amor regado a raios de sol entre os dois na paisagem de Alois, que é uma remota aldeia alpina suíça. Anna tem uma filha, Julia, de um relacionamento anterior, a quem sustenta a duras penas. Mas a menina é como filha pra Marco. A cumplicidade naquele par é perfeita. Mas um triângulo indesejado - e sem prazer algum - vai devassar a paz entre eles, quando o corpo do rapaz é lastimado por um câncer que lhe devora o cérebro. Uma frase do roteiro expressa o mal que se avizinha: "Uma tempestade levou Marco à força".

"Neste momento de cultura dos streamings, é preciso que o cinema se afirme na condição de espetáculo que tem, sem abrir mão da dimensão humana", disse Koch em Berlim.

Antes de ter seu tumor diagnosticado, Marco só demonstrava tristeza quando uma de suas vacas caia doente. Ele tinha a fauna à sua volta como um lar. E não se trata de um desenho ingênuo de personagem. Koch buscou retratar a relevância essencial dos animais e das plantas para quem vive em universos rurais, longe do progresso urbano, sem bolsões de concreto armado. "Quis retratar todas as vidas que desenham aquele mundo", disse Koch.

A partir desta quinta, Locarno se prepara para sua seleção competitiva. Um ano depois de conquistar o prêmio de melhor curta por lá com "Fantasma Neon", o cinema brasileiro regressa ao festival suíço disputando o Leopardo de Ouro apoiado nas inquietações autorais de Julia Murat e seu "Regra 34". Na trama, uma jovem advogada que estuda kung fu com uma colega, com quem divide aspirações feministas para a evolução da sociedade brasileira, é apresentada ao universo do BDSM (o sexo com práticas sadomasoquistas) e passa por uma transformação em que enfrenta ranços sexistas. Laureada na Berlinale de 2017 com o Prêmio da Crítica por "Pendular", Julia vai concorrer com 16 produções de diferentes países, incluindo o trabalho mais recente do mestre russo Aleksandr Sokurov: "Fairytale". Na seleção elaborada por Giona A. Nazzaro, crítico e atual curador de Locarno (que renovou o evento em 2021, abrindo espaço para um flerte com filmes de gênero), chamam atenção novos trabalhos da artista visual de Tel Aviv Ann Oren ("Piaffe"), do italiano Alessandro Comodin ("Gigi La Legge") e da costa-ricense Valentina Maurel ("Tengo Sueños Eléctricos"). Essa turma será julgada por um júri presidido pelo produtor Michel Merkt (Suíça), reunindo cineastas (a italiana Laura Samani, a galesa Prano Bailey-Bond e o francês Alain Guiraudie) e o produtor americano William Horberg.

Vai ter uma coprodução Brasil-Itália-França concorrendo na seleção Cineasti Del Presente: É "Noite na América", de Ana Vaz. É a mesma realizadora do elogiado "Apiyemiyekî?" (2020).

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