Por:

O injustiçado dos festivais

Por Rodrigo Fonseca

Especial para o Correio da Manhã

Exibido uma só vez no Rio, na 8 ½ Festa do Cinema Italiano, no Espaço Itaú, que vai até quarta no Rio de Janeiro, "O Rei do Riso" ("Qui Rido Io"), indicado ao Leão de Ouro de Veneza, em 2021, foi ignorado nas láureas do júri oficial da terra das gôndolas, mas deixou o Lido com uma láurea paralela de Melhor Figurino e com o também extraoficial Troféu Pasinetti, dado a seu ator Toni Servillo. Mas o prestígio que esta comédia dramática angariou por lá rendeu espaço em circuito para o longa-metragem em toda a Europa, e no Brasil, onde estreia já, já, ligando holofotes da crítica sob seu realizador: Mario Martone. Aos 62 anos de vida e 37 de uma carreira coroada com o Prêmio Especial do Júri veneziano de 1992 por "Morte di un matematico napoletano", o cineasta passa longíssimo do conceito de "diretor revelação". Mas não chega a ter, nas Américas, um nome firmado como grife; nem costuma ser encarado como autor; e, tampouco, tem, em espaços como a Berlinale ou a Croisette, um prestígio AA. Passou pela competição de Cannes, em 1995, com "L'Amore Molesto", e voltou pra lá, via Un Certain Regard, em 1998, com "Teatro di Guerra". Mas seu nome continua sendo cercado por um "Mario quem?" até em certas rodinhas cinéfilas. É pouco conhecido, em especial, naquelas que percebem o quanto o bom cinema italiano some de era em era, num vácuo causado por hecatombes políticas daquela nação. Mas depois da exibição do drama com elementos de thriller de máfia "Nostalgia", na competição pela Palma de Ouro de 2022, a menção à figura (e ao talento) de Martone há de ganhar outro peso.

Não por acaso, ele está na 8 ½ Festa do Cinema Italiano com pompa. Seu "O Rei do Riso" fala de Eduardo Scarpetta (1853-1925), uma lenda da comédia no Velho Mundo, vivida por Servillo, que brilhou mundialmente à frente de "A Grande Beleza" (Oscar de Filme Estrangeiro em 2014). Na Nápoles da Belle Époque do início do século 20, um ator criou a personagem burlesca de Felice Sciosciammocca, e as salas lotavam para ver suas apresentações. Tudo muda na vida do humorista quando ele encena uma paródia de "La Figlia di Iorio", uma tragédia escrita pelo maior poeta italiano da época, Gabriele D'Annunzio. Após a apresentação ser interrompida por vaias e assobios, Scarpetta acaba sendo processado por plágio por D'Annunzio, sendo a primeira ação judicial sobre direitos autorais na Itália.

Os aplausos conquistados por "O Rei do Riso" pavimentaram a estrada de prestígio de Martone para a passagem "Nostalgia" em Cannes. Seu filme teve um efeito de "redescoberta", de "reinvenção", seja dele mesmo, seja a dos códigos cinematográficos de sua pátria. Pátria que nos deu gigantes: Rossellini, De Sica, Fellini, Visconti, Antonioni, Pietro Germi, Pier Paolo Pasolini, Elio Petri, Lina Wertmüller, Valerio Zurlini. Pátria próspera na seara dos filmes de gênero, seja no terror (com o giallo de Dario Argento), no faroeste (com as macarronadas de Sergio Leone, Tonino Valerii e Sergio Corbucci) e nos épicos de gladiador (o Peplum). Pátria que minguou por um bom tempo, de 1984 a 2008, vendo suas fontes de fomento à produção cinematográfica escassearem. Até campeões de bilheteria como Carlo Pedersoli e Mario Girotti (conhecidos como Bud Spencer e Terence Hill) deixaram de fazer os longas da franquia "Trinity", sob a guilhotina de Berlusconi, restando visibilidade a poucos cineastas. Giuseppe Tornatore (com "Cinema Paradiso") e Roberto Benigni (com "A Vida É Bela") souberam bem flertar com as receitas da Academia de Artes e Ciências de Hollywood. Nanni Moretti se edificou entre comédias políticas ("O Crocodilo") e melodramas ("O Quatro do Filho"). Resistentes do movimento moderno também se mantiveram firmes, como o finado Bernardo Bertolucci, que foi fazer uma incursão pelo Oriente e filmar em outras línguas; e o até hoje imparável Marco Bellocchio, que espantou a telona cannoise com "Esterno Notte", na semana passada. Mas esses dois são crias dos anos 1960. Martone, não. Ele é um moderno tardio, que não se fez na liquidez da pós-modernidade. Mas ele teve a sagacidade de entender parte das chagas desse nosso tempo (a gentrificação; o emasculamento; o sucateamento da honra; a destruição dos signos de fé, por apostasia ou por banalização). E esse sagaz olhar rendeu a Cannes um presente em forma de 1h57 de filme, universalíssimo, ambientado em Nápoles. Pierfrancesco Favino - que filmou "O Traidor" de Bellocchio no RJ - é o aríete com o qual Martone avança, com seus ângulos de câmera vívidos e inquietos, explorando a profundidade de campo da Nápoles para onde seu protagonista regressa. Favino tem 95% de "Nostalgia" pra si. Os 5% que sobram se dividem entre o padre Rega (Francesco di Leva) e o bandido Oreste (Tommaso Ragno). Este foi o maior amigo que Felice, construtor e dono de empreiteira no Egito, vivido por Pierfrancesco, teve em seus anos de formação.

No início do longa, Felice regressa à sua cidade natal par cuidar da mãe doente. É um terço de arrancada doce, onde a câmera do fotógrafo Paolo Carneva gira em espasmos, caçando um quadro que fuja da obviedade. Há uma introdução, com ares melodramáticos, dedicada à relação de mamãe e filho, mas, na sequência, uma pergunta feita por Felice muda as rédeas da narrativa: "Onde está Oreste?". No passado, os dois eram unha e carne, até um crime mudar tudo. Ao tentar entender o que foi feito daquele amor de ontem, amor de amigos do peito, de pura amizade, Felice começa a se reencaixar numa paisagem que abandou há 40 anos. Mas nem sempre a paisagem nos quer de volta. Eis o perigo, para Felice, e o encanto, pra nós.

Nesta terça, as boas da 8 ½ Festa do Cinema Italiano, no Rio, são: "Leonora, Adeus", de Paolo Taviani, às 16h, e "Laços", de Daniele Luchetti, às 20h15.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.