Dosimetria expõe fissuras na base de Lula

Diante do anúncio do veto, decisão sobre redução das penas fica empurrada para 2026

Por Beatriz Matos

Wagner ficou no centro da polêmica por ter aceito acordo

A tramitação do chamado PL da Dosimetria transformou-se, em poucos dias, de um debate técnico sobre penas em um dos episódios mais ruidosos da relação entre o governo Luiz Inácio Lula da Silva e sua própria base no Congresso.

A crise ganhou corpo após o líder do governo no Senado, Jaques Wagner (PT-BA), admitir publicamente que não obstruiu a votação do projeto como parte de um entendimento político para viabilizar outras pautas econômicas de interesse do Planalto — versão rechaçada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), por ministros e por parte da bancada governista.

A proposta, que reduz critérios de aplicação e execução de penas para crimes contra o Estado Democrático de Direito, foi aprovada na noite de quarta-feira (17), pelo plenário do Senado, por 48 votos a 25, com uma abstenção. O texto segue agora para análise do presidente da República, que já antecipou a intenção de vetá-lo.

O estopim

A crise interna no governo ganhou forma após a tramitação acelerada do PL da Dosimetria na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, quando pedidos de adiamento e de audiência pública foram rejeitados e o prazo regimental de vista foi reduzido para apenas quatro horas — movimento que viabilizou a votação ainda no mesmo dia.

O episódio provocou reação imediata no plenário. O senador Renan Calheiros (MDB-AL) acusou o governo de tentar acelerar uma matéria sensível em troca da votação de pautas econômicas e afirmou ter se recusado a participar de qualquer acordo nesse sentido. “Eu nunca vi, às vésperas do Natal, um líder do governo querer dar de presente um peru para os golpistas que atentaram contra a democracia”, disse.

Renan também sustentou que a emenda aprovada tinha natureza de mérito — o que exigiria o retorno do texto à Câmara — e criticou a concessão de apenas quatro horas de vista pelo presidente da CCJ, Otto Alencar (PSD-BA). Renan referia-se à emenda feita por Sergio Moro (União Brasil-PR), que tratava de restringir qualquer benefício de redução de penas aos envolvidos nos atos antidemocráticos.

Foi nesse ambiente de contestação que, já no plenário, Jaques Wagner decidiu se manifestar e afirmou não ver constrangimento na condução do processo. “Não me envergonho do que fiz, estou muito tranquilo na condução da minha liderança e acho que o que a gente fez foi simplesmente colocar em votação aquilo que está para ser votado”, declarou.

Roupa suja

A reação extrapolou o plenário e chegou às redes sociais. Em publicação no X, a ministra das Relações Institucionais, Gleisi Hoffmann (PT-PR), afirmou que não houve negociação envolvendo o projeto e classificou a condução do tema como equivocada. “A redução das penas dos golpistas é um desrespeito à decisão do STF e um grave retrocesso na legislação que protege a democracia”, escreveu. Em seguida, completou: “A condução desse tema pela liderança do governo no Senado na CCJ foi um erro lamentável”.

A crítica pública escancarou o desalinhamento dentro do governo e provocou resposta imediata de Jaques Wagner, que também recorreu às redes sociais. “Lamentável é nos rendermos ao debate raso e superficial. É despachar divergências de governo por rede social”, afirmou o senador.

Veto

Diante da escalada da crise, Lula decidiu se posicionar publicamente. Durante café da manhã com jornalistas, no Palácio do Planalto, nesta quinta-feira (18), o presidente negou qualquer acordo e confirmou que vetará o projeto.

“Se houve acordo com o governo, eu não fui informado. Então, se o presidente não foi informado, não houve acordo”, afirmou. Lula também disse que não é aceitável discutir redução de penas antes da conclusão dos julgamentos. “Nem terminou o julgamento ainda e já resolvem diminuir a pena. Com todo o respeito que tenho ao Congresso, na hora que chegar na minha mesa, eu vetarei”, declarou.

O presidente ressaltou ainda que o Congresso tem o direito de derrubar o veto, caso queira, reforçando que a disputa institucional deve se prolongar.

Judicialização

Paralelamente ao anúncio de veto presidencial, bancadas que se posicionaram contra o PL da Dosimetria na Câmara dos Deputados ingressaram com mandado de segurança no STF pedindo a suspensão da tramitação da proposta. A ação foi apresentada pelos partidos do PT, PSB, PCdoB e PSOL, sob o argumento de que o processo legislativo no Senado foi marcado por “vícios formais graves”.

Em nota, o líder do PT na Câmara, Lindbergh Farias (PT-RJ), afirmou que uma emenda aprovada na CCJ do Senado foi indevidamente classificada como de redação, apesar de promover alteração substancial de mérito — o que teria evitado o retorno obrigatório do projeto à Câmara e configurado burla ao bicameralismo constitucional.

Segundo a liderança petista, houve ainda supressão indevida do prazo regimental de vista na CCJ, sem regime de urgência e sem justificativa objetiva, restringindo o debate parlamentar e violando prerrogativas das minorias.

Oposição mira anistia

Do lado da oposição, a aprovação foi tratada como uma vitória parcial. O senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) afirmou que o texto não era o ideal, mas representava o possível no atual contexto político. “Pulamos o primeiro degrau”, disse.

Já o líder do PL na Câmara, Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), deixou claro que o partido não desistiu de uma anistia ampla. “A luta vai continuar até a gente anistiar todos esses injustiçados”, afirmou, projetando o debate para o próximo ano legislativo.

Bolsonaro

Embora apresentado como um ajuste técnico, o projeto é atravessado pela figura do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). As mudanças podem beneficiar réus como o ex-presidente e militares como Almir Garnier, ex-comandante da Marinha; Paulo Sérgio Nogueira, ex-ministro da Defesa; Walter Braga Netto, ex-ministro da Casa Civil, e Augusto Heleno, ex-chefe do Gabinete de Segurança Institucional.

Bolsonaro cumpre pena de 27 anos e três meses em uma sala da Superintendência da Polícia Federal, em Brasília. O ministro Alexandre de Moraes (STF) autorizou sessões diárias de fisioterapia respiratória e motora, o recebimento de cartas e encomendas, visitas regulares da ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro e uma entrevista ao portal Metrópoles, marcada para 23 de dezembro.

Na noite da aprovação do projeto, o senador Flávio Bolsonaro comemorou o resultado como “o que era possível” no atual contexto. Já o líder do PL na Câmara, Sóstenes Cavalcante, afirmou que a aprovação é apenas o primeiro passo e que a oposição seguirá defendendo uma “anistia ampla, geral e irrestrita.”

Desgaste

Para especialistas ouvidos pela reportagem, o anúncio de veto presidencial não encerra a controvérsia em torno do PL da Dosimetria e, ao contrário, tende a deslocar o embate para 2026, com forte judicialização no Supremo Tribunal Federal (STF).

O advogado e analista político Melillo Dinis avalia que, caso o veto seja total, o texto não produz efeitos imediatos, mas permanece vivo no Congresso. “Com o veto presidencial, a legislação não entra em vigor. Teria que aguardar a derrubada do veto pelo Congresso Nacional, o que, no cenário atual, é uma tendência”, afirma.

Segundo Dinis, mesmo antes de eventual derrubada do veto, o projeto já reúne elementos suficientes para ser questionado no STF. Ele aponta vícios formais no processo legislativo, especialmente na forma como o Senado tratou mudanças substanciais como se fossem de redação. “Há razões formais, como a classificação equivocada de emenda de mérito, que deveria devolver o texto à Câmara, e há razões de conteúdo, como a violação do princípio da igualdade”, diz.

Na avaliação do analista, o texto aprovado abre espaço para interferência indevida do Legislativo na individualização das penas, o que tende a atrair o controle do Judiciário. “O Direito Penal não aceita medidas exclusivas para um tipo específico de crime, como o PL acabou por fazer. Qualquer que seja o desfecho entre Congresso e Executivo, isso será resolvido no Supremo”, afirma.

Dinis também ressalta que, caso a lei venha a entrar em vigor no futuro, seus efeitos alcançariam condenações já em curso, inclusive aquelas relacionadas aos atos de 8 de janeiro. “A Constituição garante a retroatividade da lei penal mais benéfica. Isso significa que, se a norma reduzir penas, ela alcança inclusive casos já julgados, mesmo com coisa julgada”, explica.

Do ponto de vista político, o especialista vê a votação como fruto de uma escolha estratégica do governo no Senado. “O acordo foi feito dessa forma para aprovar a pauta econômica do governo, que passou de forma expedita para ampliar a arrecadação federal”, afirma. Para ele, o desgaste público decorre da própria desorganização interna. “Atrito é a marca da articulação do governo. Eles não se entendem e, enquanto isso, a caravana da oposição passa.”

Na mesma linha, o doutor em Direito Constitucional Guilherme Barcelos, sócio do Barcelos Alarcon Advogados, avalia que o episódio revelou uma desarticulação profunda dentro do próprio governo. “Harmonia não há nem internamente. Houve parlamentares do partido do governo que votaram a favor do projeto e, ao mesmo tempo, integrantes do governo anunciam que vão ao STF questionar a lei. Isso não faz muito sentido”, afirma.

Para Barcelos, o veto presidencial não reverte o desgaste já produzido. “O desgaste foi do governo, a partir dos seus próceres no Parlamento e na articulação política. O veto é apenas o exercício de uma prerrogativa constitucional do presidente”, diz.

Na leitura do constitucionalista, o ônus político do episódio recai majoritariamente sobre o Planalto. “Agora, o ônus é todo do governo. O Congresso pode até derrubar o veto no próximo ano, mas a crise política já está posta”, conclui.