Senado tenta corrigir brechas no PL da Dosimetria
Texto será analisado nesta quarta na CCJ sob acusação de beneficiar crimes para além dos atos do 8 de janeiro.
O PL da Dosimetria continua no cerne das discussões do Senado desde que o projeto foi aprovado no Plenário da Câmara, após longas negociações e reuniões com as bancadas de todos os partidos conduzidas pelo relator da matéria na Câmara, o deputado Paulinho da Força (Solidariedade-SP).
Após a aprovação pelos deputados, a proposta seguiu para o Senado, onde passou a enfrentar forte resistência. Apesar de todas as articulações, o texto — aprovado em votação realizada de madrugada na Câmara — passou a ser alvo de críticas depois que o próprio relator no Senado, o senador Esperidião Amin (PP-SC), avaliou que a proposta carrega um “contrabando”. A avaliação surgiu dias depois de o texto ter chegado à Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Casa.
O projeto, que a princípio tinha como objetivo reduzir as penas dos condenados pelos atos de 8 de janeiro, acabou se distanciando do foco principal e se converteu em uma revisão das regras de dosimetria penal e de progressão de regime, com alterações diretas no Código Penal e na Lei de Execução Penal.
Ao alterar critérios de dosimetria e de progressão de regime, o projeto pode produzir efeitos que vão além dos casos futuros. Pelo princípio constitucional da retroatividade da norma penal mais benéfica, previsto no artigo 5º, inciso XL, da Constituição, mudanças que favoreçam o réu podem ser aplicadas também a crimes cometidos no passado. Na prática, isso significa que condenações já definitivas poderiam ter penas revistas, com possibilidade de redução do tempo de prisão ou progressão mais rápida de regime. É esse impacto retroativo que tem despertado preocupação no Senado, já que o texto aprovado pela Câmara não limita seus efeitos aos atos de 8 de janeiro e pode alcançar uma ampla gama de crimes.
Pedido de Bolsonaro
O senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), após visitar o ex-presidente Jair Bolsonaro nesta terça-feira (16), aproveitou para informar sobre a repercussão do Projeto de Lei da Dosimetria. Segundo o senador, o ex-presidente pediu que o texto fosse aceito da forma como está, destacando que sua principal preocupação é com os demais condenados. “Ele vai aguentar o tranco até que a sua situação seja resolvida”, afirmou Flávio.
O senador ainda explicou que Bolsonaro deu uma “diretriz” para que as lideranças aceitassem a redação do projeto como está, mesmo que ele não seja beneficiado. Flávio também ressaltou que a reação ao projeto foi positiva e elogiou o ex-presidente, dizendo que ele coloca “o interesse do Brasil e de outras pessoas inocentes à frente do próprio interesse dele”.
Sem jabutis
O senador Esperidião Amin reforçou que trabalha para apresentar um texto “livre de qualquer acusação de beneficiar outros crimes”, sem “jabutis” ou desvios de finalidade.
“Eu estou trabalhando para apresentar um projeto livre, livre de qualquer acusação de beneficiar outros que não os apenados pelo processo do 8 de janeiro. Ninguém mais vai poder dizer que isso é para beneficiar crime disso, crime daquilo. São todas as condenações, se justas ou injustas. Fica claro: nenhum contrabando, nenhum jabuti, nenhum corpo estranho”, afirmou o relator do texto.
O relatório será apreciado na CCJ nesta quarta-feira (17), e a expectativa é que seja votado em plenário no mesmo dia.
Rejeição total
Em voto apresentado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, o senador Alessandro Vieira (MDB-SE) defendeu a rejeição integral do projeto. Para ele, o texto aprovado pela Câmara extrapola o debate sobre os atos de 8 de janeiro e promove mudanças amplas no sistema penal, com risco de beneficiar criminosos comuns e organizações criminosas.
O senador afirma que a proposta passou por uma mudança de escopo durante a tramitação e também reforçou a ideia de que o texto se transformou em um caso de “contrabando legislativo”: sob o argumento de corrigir excessos em condenações específicas, o projeto altera regras gerais do Código Penal e da Lei de Execução Penal, com efeitos para todo o sistema.
Progressão vira brecha
O ponto mais crítico apontado por Alessandro Vieira é a mudança na Lei de Execução Penal, que fixa a progressão de regime após o cumprimento de um sexto da pena como regra geral. Segundo ele, essa alteração cria uma brecha perigosa, porque qualquer crime que não esteja claramente listado nas exceções pode acabar se beneficiando da regra mais branda.
Na avaliação do senador, isso abre espaço para que crimes graves, casos de corrupção e até integrantes de facções criminosas consigam progressão antecipada por meio de interpretações jurídicas favoráveis, esvaziando o endurecimento penal adotado nos últimos anos.
Para Alessandro Vieira, emendar o texto não resolve o problema, já que a Câmara pode derrubar as alterações feitas pelo Senado. Diante disso, ele defende que o projeto seja rejeitado integralmente e substituído por uma nova proposta, focada apenas na individualização das penas dos atos antidemocráticos, sem abrir brechas no sistema penal como um todo.
Efeitos da dosimetria
A professora de Direito Constitucional da Universidade Estadual de Londrina (UEL), Emmanuella Denora, reforça que o impacto do projeto não se restringe aos réus do 8 de janeiro, por se tratar de uma alteração geral na legislação penal.
“Todos os processos já julgados e em cumprimento de pena terão o recálculo da execução. Nos processos ainda em andamento, as penas já serão fixadas conforme a nova lei, se ela entrar em vigor”, diz.
Para o cientista político Eduardo Galvão, professor de Políticas Públicas do Ibmec Brasília, o PL da Dosimetria deixou de ser um ajuste pontual para os condenados do 8 de janeiro e passou a ter impacto estrutural sobre o sistema penal. Segundo ele, o texto aprovado pela Câmara extrapola o recorte original ao alterar regras gerais de dosimetria e de progressão de regime no Código Penal.
“Isso transforma um debate pontual em uma mudança estrutural, com impacto sobre milhares de processos, o que expõe o Congresso a críticas de leniência penal e de captura por agendas corporativas ou casuísticas”, avalia.
Eduardo Galvão afirma que o chamado “contrabando legislativo” ocorre porque a proposta não restringe seus efeitos aos crimes contra o Estado Democrático de Direito. “Ao flexibilizar parâmetros gerais, ele pode beneficiar crimes como roubo simples, lesão corporal grave, sequestro sem qualificadoras e extorsão”, diz.
Na avaliação do professor, o alargamento do alcance do projeto foi uma escolha política consciente. “Redações amplas permitem acomodar interesses diversos e formar maioria na Câmara, mas transferem o custo político para a etapa seguinte”, afirma.
