STF dá início ao julgamento sobre a tentativa de golpe de Estado

Sob condução da Primeira Turma, foram ouvidas as defesas de Cid, Ramagem, Garnier e Torres

Por Karoline Cavalcante e Eline Sandes

No total, são cinco crimes imputados aos acusados do chamado "Núcleo Crucial"

No que promete ser um dos julgamentos mais emblemáticos da história recente do país, o Supremo Tribunal Federal (STF) deu início nesta terça-feira (2) à análise da Ação Penal 2668, que acusa o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e outros sete ex-integrantes do alto escalão de seu governo de envolvimento em uma tentativa de golpe de Estado. O julgamento, conduzido pela Primeira Turma da Corte, ocorre em meio a tensões políticas e institucionais.

A sessão começou com a leitura do relatório do ministro Alexandre de Moraes, relator do caso, que ocupou quase uma hora e meia com uma apresentação detalhada dos marcos do processo — desde a fase de inquérito até a instrução processual. Em sua fala inicial, o magistrado reforçou o compromisso do STF com a imparcialidade e a legalidade, destacando que o julgamento se pauta em provas concretas e no respeito às garantias fundamentais dos réus.

Justiça

“Existindo provas, acima de qualquer dúvida razoável, as ações penais serão julgadas procedentes, e os réus condenados. Havendo prova da inocência ou mesmo qualquer dúvida razoável sobre a culpabilidade dos réus, eles serão absolvidos. Assim se faz a justiça”, destacou o ministro.

Durante sua manifestação, Moraes condenou tentativas de intimidação ao Judiciário, tanto internas quanto externas, e defendeu a resiliência institucional do Brasil frente à escalada autoritária de parte da elite política.

“Esse é o papel do Supremo: julgar com imparcialidade e aplicar a justiça a cada um dos casos concretos. Independentemente de ameaças ou coações, ignorando pressões internas ou externas. Lamentavelmente, no curso”, declarou, referindo-se, inclusive, a pressões internacionais, como as sanções impostas a ele pelos Estados Unidos via Lei Magnitsky — criada para punir violações graves de direitos humanos e casos relevantes de corrupção. "Soberania nacional jamais será vilipendiada, negociada ou extorquida", prosseguiu.

Acusação

A acusação, conduzida pelo procurador-geral da República, Paulo Gonet, sustentou que os oito réus integravam o que chamou de “núcleo crucial” de uma organização criminosa com fins golpistas. Segundo a denúncia, o plano teve início ainda em 2021, ganhando tração após a derrota de Bolsonaro nas eleições de 2022. Gonet descreveu um conjunto de ações coordenadas que visavam subverter a ordem democrática, como ataques sistemáticos ao sistema eleitoral, reuniões para elaboração de minutas golpistas e tentativas de cooptação das Forças Armadas.

Um dos pontos centrais da acusação é o chamado plano "Punhal Verde e Amarelo", que teria sido produzido dentro do Palácio do Planalto e previa ações como sequestro e assassinato de autoridades – entre elas, o próprio Alexandre de Moraes e o então presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT). A efetivação do golpe, contudo, não se concretizou, segundo Gonet, devido à recusa dos comandantes das Forças Armadas em aderir à conspiração. Ainda assim, os eventos de 8 de janeiro de 2023 – quando sedes dos Três Poderes foram invadidas e depredadas – seriam, para a PGR, a culminância desse plano, executado com o apoio logístico e ideológico dos denunciados.

Para embasar a acusação, o Ministério Público Federal (MPF) afirma contar com farta documentação: áudios, vídeos, mensagens trocadas entre os envolvidos, rascunhos de decretos e até arquivos digitais salvos em dispositivos oficiais. Além disso, pesa sobre o caso a colaboração premiada do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, cujo depoimento teria sido fundamental para a reconstrução da cronologia dos fatos.

Mauro Cid

As defesas, por sua vez, negam qualquer envolvimento dos réus com um projeto golpista. A defesa do ex-ajudante de ordens adotou um tom firme para contestar as acusações. O advogado Cezar Bittencourt argumentou que não há elementos concretos que justifiquem o processo contra seu cliente, ressaltando que a denúncia está baseada em suposições e vínculos funcionais que, por si só, não configuram crime.

Para Bittencourt — que iniciou sua sustentação oral tecendo uma série de elogios aos ministros — não há nenhuma prova de que Cid tenha atuado para subverter o regime democrático, nem tampouco qualquer participação nos ataques de 8 de janeiro de 2023.

“Ele não participou de invasões, não mobilizou ninguém, não instigou ninguém. Estava nos Estados Unidos no dia dos ataques. Não financiou e nem sequer sabia do que estava acontecendo”, afirmou. “Ninguém pode ser punido por conexões abstratas”, prosseguiu o advogado.

Na ocasião, o advogado Jair Alves Ferreira, que também cuida da defesa de Cid, informou que seu representado pediu para deixar o Exército por “não ter mais condições psicológicas de continuar como militar".

Alexandre Ramagem

Durante sua fala, o advogado Paulo Renato Garcia Cintra — responsável pela defesa do deputado federal e ex-diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), Alexandre Ramagem (PL-RJ) — acusou a PGR de cometer “erros graves”, citando que a acusação de que seu cliente teria feito uso do software israelense “First Mile” para espionar autoridades brasileiras não se aplica.

Cintra protagonizou também um momento de tensão ao citar que "voto impresso" e "voto auditável" são sinônimos. Em resposta, a ministra Cármen Lúcia o corrigiu: “O advogado fez muitas referências à inexistência ou que teria havido uma campanha pela eleição/processo auditável e que isso foi objeto de uma emenda constitucional. Mas Vossa Senhoria sabe a diferença? Você repetiu como sinônimo e não é. O processo eleitoral é amplamente auditável no Brasil”.

Almir Garnier

A defesa do ex-comandante da Marinha Almir Garnier, o ex-senador e advogado Demóstenes Lázaro Xavier, apresentou uma fala inusitada no início de sua sustentação oral ao elogiar o ministro Alexandre de Moraes e declarar que “levaria um cigarro” para Bolsonaro. Ele defendeu o papel democrático das eleições, lembrando os magistrados de que deu parecer sobre a inconstitucionalidade de um projeto de lei, em 2009, que buscava estabelecer o voto impresso no Brasil.

Demóstenes Xavier afirmou que o ex-comandante não colocou tropas à disposição para executar um golpe de Estado após as eleições de 2022, e negou a existência de provas concretas contra o militar. Ele sustentou que não houve reunião no dia 7 de dezembro de 2022 para o suposto planejamento. Ele também pediu pela rescisão da colaboração premiada de Mauro Cid.

Anderson Torres

O advogado Eumar Novacki, que representa o ex-ministro da Justiça e ex-secretário de Segurança Pública do Distrito Federal Anderson Torres, defendeu que o réu não estava presente em Brasília em 8 de janeiro de 2023, pois estava nos Estados Unidos com a família na ocasião, tendo comprado passagens aéreas em novembro de 2022, junto a uma agência de viagens.

Novacki negou que houve omissão de Torres e sustentou, com depoimentos de testemunhas, que o ex-secretário de segurança havia solicitado a desmobilização do acampamento bolsonarista em frente ao Quartel-General do Exército em Brasília.

“Quem tem intenção golpista vai desmobilizar os acampamentos e discutir até a possibilidade de prender os líderes do acampamento?”, argumentou.

O advogado também apresentou capturas de tela (“prints”) reiterando que Torres havia sido tranquilizado, em mensagem do dia anterior, de que os manifestantes estavam sob controle, e de que ele repudiou publicamente os atos de 8 de janeiro. Ainda, acrescentou que a delação de Cid confirma que Torres não esteve presente em nenhuma reunião: “ele entregou as senhas do seu telefone e do seu e-mail e não houve nada que pudesse incriminá-lo”, afirmou o advogado, que pediu a absolvição do acusado.

Julgamento

O julgamento ocorre presencialmente na sede do STF em Brasília, com transmissão ao vivo pela TV Justiça, Rádio Justiça e YouTube oficial da Corte. A previsão é que se estenda por cinco sessões — nos dias 2, 3, 9, 10 e 12 de setembro — ao fim das quais será conhecida a sentença: condenação ou absolvição dos oito integrantes do núcleo acusado.

Nesta quarta-feira (3) seguem as alegações de mais quatro figuras centrais do primeiro grupo analisado. Os depoimentos das defesas do ex-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general da reserva Augusto Heleno; do ex-presidente Jair Bolsonaro; do ex-ministro da Defesa general da reserva Paulo Sérgio Nogueira; e do ex-ministro da Casa Civil general da reserva Walter Braga Netto, respectivamente, nesta ordem.

No total, são cinco crimes imputados aos acusados: tentativa de golpe de Estado, organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado — Ramagem responde apenas a três desses crimes, devido à prerrogativa de foro por ser deputado federal. Caso a denúncia seja aceita na íntegra e os réus condenados, as penas podem ultrapassar 40 anos de prisão, dependendo do grau de envolvimento de cada um.

A ausência de Bolsonaro na abertura do julgamento foi confirmada por seu advogado, Celso Vilardi, que alegou problemas de saúde do réu. Segundo ele, o ex-presidente enfrenta crises de esofagite e gastrite, com episódios de vômito e soluços persistentes, o que inviabilizou sua presença.