O panorama internacional na 80ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), realizado em Nova York, foi marcado por fortes declarações e uma polarização crescente, com destaque para o discurso do primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu (Likud). Na ocasião, ele afirmou que a operação militar contra o Hamas na Faixa de Gaza seguirá até que Israel "conclua o trabalho". O pronunciamento, de tom desafiador, foi um reflexo claro de seu alinhamento com sua base interna, mas também evidenciou um distanciamento da comunidade internacional, que mostrou forte rejeição à continuidade dos ataques à população palestina.
Em um discurso que durou mais de 40 minutos — bem acima dos 15 minutos recomendados pela ONU — Netanyahu reafirmou a intenção de eliminar completamente o Hamas, grupo que classificou como "remanescente de barbárie".
“Os últimos elementos do Hamas estão entrincheirados. Precisamos terminar o serviço”, declarou. O primeiro-ministro negou acusações de que as forças israelenses estariam atingindo civis ou promovendo escassez de alimentos em Gaza. “"Se há fome, é por culpa do Hamas, que está roubando os alimentos", alegou. A guerra, segundo autoridades palestinas, já deixou mais de 65 mil mortos e grande parte do território devastado.
Protestos
Netanyahu fez a declaração na última sexta-feira (27), diante de um plenário esvaziado. Delegações de dezenas de países, entre eles o Brasil, se retiraram em protesto antes mesmo do início da fala. Muitos diplomatas deixaram em seus assentos fotografias de vítimas do conflito, em gesto simbólico de repúdio à ofensiva israelense. No espaço reservado ao público convidado, entretanto, apoiadores do premier o aplaudiram em alguns momentos.
Entre as poucas delegações que permaneceram no local estavam representantes dos Estados Unidos, Reino Unido, França, Itália, Noruega, Finlândia e da União Europeia. Diplomatas brasileiros, que também se ausentaram, usavam o tradicional lenço palestino, o keffiyeh, como sinal de solidariedade. Na abertura da assembleia, inclusive — na última terça-feira (23) — a primeira-dama brasileira, Rosângela Lula da Sílva, usou uma vestimenta com um tradicional bordado palestino.
O Correio da Manhã conversou com especialistas para entender melhor o cenário. Para a advogada especialista em direito internacional, Hanna Gomes, o gesto simbólico das delegações representou um ato global e diplomático de protesto. “A saída do plenário, as declarações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) classificando as ações em Gaza como genocídio, e até mesmo o simbolismo da vestimenta da primeira-dama, representam um rompimento com a histórica equidistância na política externa brasileira em relação ao conflito. O país assume uma postura mais alinhada com a causa palestina, colocando-se ao lado de nações que pedem o fim imediato dos ataques e o respeito ao direito humanitário”, afirmou.
Diplomacia
A advogada, observou ainda que mesmo que os Estados Unidos permaneçam como o principal aliado de Israel, oferecendo apoio militar e diplomático, como o poder de veto no Conselho de Segurança da ONU, vão contra um grupo muito maior e mais heterogêneo de nações, ou seja, “mesmo sendo potências militares, estão na contramão do entendimento pela Paz”.
Na avaliação do professor de Relações Internacionais da Fundação Getulio Vargas (FGV) e da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap) Vinícius Vieira, embora o Brasil tenha se posicionado contra Israel, é improvável que isso leve a um isolamento do país. Ao contrário, mencionou que a crescente rejeição a Netanyahu, atinge até seus aliados tradicionais, citando a recente objeção do presidente dos EUA, Donald Trump (Republicano) em relação à anexação da Cisjordânia por Israel. “Isso demonstra o crescente isolamento do primeiro-ministro”, observou o professor.
De uma forma mais ampla, a professora de Relações Internacionais da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), Natalia Fingermann avaliou que não houve grandes surpresas nos discursos de Lula e Trump. O presidente dos EUA manteve sua postura crítica em relação à ONU, mas buscou uma aproximação com o Brasil. Já Lula reafirmou a posição histórica do país em favor da solução de dois Estados e, corajosamente, usou o termo “genocídio” para descrever o conflito em Gaza, alinhando-se a um relatório recente da ONU sobre a situação palestina. Por outro lado, observou que a guerra na Ucrânia e Rússia teve pouca ressonância na Assembleia. “Pauta praticamente ausente dos discursos dos principais líderes, como se a resolução desse conflito fosse uma questão restrita às próprias partes envolvidas”, declarou Fingermann.
Lula e Trump
No mesmo evento, outra movimentação chamou a atenção: o presidente norte-americano revelou sua intenção de se reunir com o líder brasileiro ainda nesta semana. O anúncio foi feito de forma informal durante seu discurso, quando Trump mencionou um breve encontro com Lula nos bastidores da ONU. “Houve química. Gosto dele e ele gosta de mim”, disse, sinalizando um interesse em estreitar laços políticos, apesar da crise diplomática entre os dois países, que se intensificou nos últimos meses com a imposição de sanções comerciais e políticas contra o Brasil e suas autoridades.
O anúncio foi bem recebido pelo governo brasileiro, que ainda avalia a melhor forma de viabilizar o encontro. Segundo a advogada Hanna Gomes, Lula deve priorizar temas de interesse mútuo — como economia, clima, guerra na Ucrânia e investimentos — deixando questões mais delicadas para um segundo momento. Para ela, os discursos na ONU já indicaram um aceno de reaproximação, e a expectativa é que a reunião, formal ou informal, ajude a restabelecer um canal de diálogo de alto nível.
Já o professor Vinícius Vieira acredita que a negociação pode envolver a redução de tarifas sobre o etanol e concessões brasileiras em áreas estratégicas, como metais raros usados na transição energética. “Em contrapartida, os EUA poderiam oferecer apoio à industrialização desses metais. Adicionalmente, o uso de energia para data centers de grandes empresas de tecnologia pode ser incluído na barganha, potencialmente com uma regulamentação menos restritiva”, disse, ao mencionar que apesar de possíveis impactos regulatórios no Brasil, essas medidas são alternativas para evitar um agravamento nas relações bilaterais.
Vieira destaca, porém, que a retirada de penalidades econômicas é possível, mas que as sanções direcionadas a ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) dificilmente serão revistas.
Sanções
Na última segunda-feira (22), a Casa Branca determinou que a Lei Magnitsky, criada para punir violações graves de direitos humanos e casos relevantes de corrupção — e que já atinge o ministro do STF Alexandre de Moraes desde julho — fosse aplicada também à esposa do magistrado, Viviane Barci de Moraes, e ao instituto Lex, vinculado à família Moraes. Na data, Washington também revogou o visto de mais sete autoridades brasileiras.
Desde o início de agosto, Trump aplicou uma tarifa de 50% sobre diversos produtos brasileiros. Entre as justificativas apresentadas, está o julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) — atualmente em prisão domiciliar, enquanto aguarda o período de apelação de sua condenação a 27 anos e três meses de prisão — e outros sete membros do “Núcleo Crucial” da denúncia, que articulavam uma tentativa de golpe de Estado após as eleições de 2022. Além disso, a imposição de restrições a plataformas de mídia social sediadas nos EUA que não cumpriram as leis locais também foi utilizada como embasamento.