Em um julgamento histórico, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) formou maioria para condenar o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) por tentativa de golpe de Estado e outros quatro crimes relacionados à trama que buscava impedir a transição democrática do poder após as eleições de 2022. Ao lado dele, outros sete aliados foram responsabilizados por participação na organização criminosa, incluindo militares e ex-integrantes do governo. A análise, que ocorreu ao longo de cinco dias, foi encerrada nesta quinta-feira (11).
A ministra Cármen Lúcia, apresentou o seu voto ao longo da tarde e reforçou que as provas deixam claro o intento de desestabilizar o sistema democrático brasileiro. “A democracia brasileira não se abalou. Os prédios foram reconstruídos. A hora é de julgamento. Somente com a democracia um país vale a pena”, declarou a magistrada, ao comentar os ataques de 8 de janeiro de 2023 — quando manifestantes invadiram e depredaram as sedes dos Três Poderes.
Trama golpista
Segundo ela, os elementos constantes no processo não deixam dúvidas de que o grupo, sob liderança de Bolsonaro, operava com um plano bem definido de ataque às instituições, especialmente ao Poder Judiciário. “Não se trata de atos soltos, mas de um projeto que incluía desde a desinformação eleitoral até planos concretos de tomada do poder”, disse, citando iniciativas como o "Plano do Punhal Verde e Amarelo", que previa o assassinato do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT), do seu vice e ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, Geraldo Alckmin (PSB) e do ministro Alexandre de Moraes, que à época presidia o Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Cármen Lúcia também destacou que “semear a confiança é construção; semear a desconfiança é simples”, em alusão à sistemática campanha de descrédito contra o sistema eleitoral brasileiro. Segundo a magistrada, que atualmente é a presidente do TSE, houve tentativa deliberada de “desmoralizar a urna eletrônica” e desacreditar o processo democrático. Para a ministra, ficou evidente que a tentativa de golpe não foi uma reação espontânea ou popular. “É óbvio que foi crime tentado. Se tivesse sido consumado, não estaríamos aqui para julgar”, afirmou.
Durante seu voto, a ministra fez menção direta à atuação de diversos integrantes da antiga cúpula do governo. A participação do ex-ministro da Justiça, Anderson Torres, foi apontada como “amplamente comprovada, direta e inequívoca”. Ela destacou que Torres tinha conhecimento dos relatórios da Polícia Federal (PF) e participou de reuniões fora dos padrões rotineiros da Pasta.
O ex-ajudante de ordens da Presidência, o tenente-coronel Mauro Cid, também foi citado como agente ativo da empreitada criminosa, e sua colaboração premiada foi considerada válida. “Ele não foi mero espectador, mas executor”, reforçou Cármen Lúcia.
Foi mencionado ainda o envolvimento do deputado federal Alexandre Ramagem (PL-RJ), à época diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), que teria usado a estrutura do órgão para fins políticos. Os demais integrantes do chamado “Núcleo Crucial” — ex-comandante da Marinha, Almir Garnier Santos; o ex-ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira; o ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno; e o ex-ministro da Casa Civil, Walter Braga Netto — também foram apontados como peças fundamentais do grupo, tanto na propagação de discursos golpistas quanto na manutenção de acampamentos em frente aos quartéis-generais do Exército.
Zanin
Último a votar, o presidente da Primeira Turma da Corte, ministro Cristiano Zanin, acompanhou integralmente o relator, ministro Alexandre de Moraes. Para Zanin, as provas demonstram de forma “inequívoca” a existência de uma organização criminosa estruturada com o objetivo de manter o ex-chefe do Executivo no poder após a derrota eleitoral.
“O planejamento não ficou no campo das ideias. Não foram atos preparatórios. Houve ações coordenadas, hierarquizadas e deliberadas”, afirmou. O juiz também enfatizou que não há dúvidas sobre a autoria e materialidade dos crimes ocorridos em 8 de janeiro de 2023. Zanin mencionou ainda provas como documentos sobre a decretação de estado de sítio, encontrados no celular de Mauro Cid, e a minuta de estado de defesa achada na casa de Anderson Torres. Segundo o ministro, Augusto Heleno e Ramagem utilizaram a Abin para infiltrar agentes e monitorar o processo eleitoral.
Sobre Bolsonaro, Zanin foi taxativo: “Embora o acusado negue ciência do plano, há elementos probatórios que demonstram o contrário. A sua liderança era indiscutível e a coação não se deu apenas nos discursos. Havia ações concretas e sucessivas.”
Julgamento
O relator do caso, ministro Alexandre de Moraes, que abriu a votação no início da semana, pediu licença nesta quinta-feira para apresentar novas ilustrações de provas que, segundo ele, “tornam impossível a negação do intento golpista”. Ele expôs trechos de falas do ex-presidente durante manifestações em que incitava ataques ao STF e convocava a população a pressionar os Poderes. Para Moraes, “não se tratou de um domingo no parque, foi uma tentativa de golpe de Estado conduzida por uma organização criminosa”.
Também na sessão, o ministro Flávio Dino — que já havia seguido a mesma linha de Moraes com ressalvas em relação à aplicação da dosimetria — reforçou a gravidade do caso ao comparar com o golpe militar de 1964. “Lá havia menos provas documentais. Aqui, só faltou uma ata”, ironizou. Para ele, a cronologia dos fatos, as comunicações interceptadas e os documentos apreendidos deixam claro que o grupo não aceitava o resultado das eleições e buscava, por todos os meios, manter o ex-presidente no poder.
O único voto divergente foi o do ministro Luiz Fux, que foi realizado ao longo de 13 horas na última quarta-feira (10) e absolveu Bolsonaro e outros cinco acusados. Para Fux, as provas não foram suficientes para a condenação de todos. No entanto, ele votou pela condenação de Mauro Cid e do general Braga Netto pelo crime de abolição do Estado Democrático de Direito.
Dosimetria
Previsto inicialmente para ser concluído apenas na sexta-feira (12), o julgamento foi acelerado. A Corte não apenas encerrou a análise das acusações como também decidiu antecipar a votação da dosimetria das penas. Entre os condenados, as penas variam significativamente, refletindo o grau de envolvimento de cada um nas ações.
Bolsonaro recebeu a pena mais severa: 27 anos e três meses de prisão, somados a um mês de detenção e 124 dias-multa, calculados com base em dois salários mínimos por dia. Braga Netto foi condenado a vinte e seis anos de prisão mais 100 dias-multa, enquanto Torres e Garnier foram sentenciados a vinte e quatro anos mais 100 dias-multa cada. Heleno teve pena estipulada em vinte e um anos de reclusão mais 84 dias-multa. Já Nogueira recebeu uma condenação de dezenove anos mais 84 dias-multa.
No caso de Ramagem, a aplicação considerou somente três das cinco acusações — dano qualificado e destruição de patrimônio foram suspensas — conforme previsto na Constituição para parlamentares em exercício. Portanto, ficou fixada em 16 anos, um mês e 15 dias de prisão, somada aos 50 dias-multa no valor de um salário mínimo. Todos responderão inicialmente em regime fechado. Devido ao acordo de colaboração premiada, Cid foi condenado a dois anos em regime aberto.
Além disso, os ministros determinaram a perda do mandato de Ramagem, decisão esta que precisa ser ratificada em votação na Câmara dos Deputados. Por fim, ficou estabelecida a extensão da inelegibilidade de Bolsonaro por mais oito anos — o ex-presidente já está inelegível até 2030 por decisão do TSE — e perda das patentes de todos os militares condenados.
Recursos
Embora o Supremo tenha definido as penas com celeridade, a execução das condenações ainda não ocorrerá de forma imediata. Os réus ainda podem recorrer da decisão, o que deve adiar o cumprimento efetivo das sentenças. A defesa de alguns dos condenados já se movimenta nesse sentido. O advogado Matheus Milanez, representante do general Augusto Heleno, já havia informado ao jornal Correio da Manhã que um único voto pela absolvição seria suficiente para embasar um recurso ao plenário da Corte — e esse voto, de fato, veio com o posicionamento de Fux.