STF dá fim ao drama das Mães de Haia

Por unanimidade, Supremo determina fim de repatriação automática de crianças. Ao Correio, Raquel Cantarelli comemora a decisão

Por Gabriela Gallo

Raquel comemorou a decisão: "Violência doméstica e abuso não podem ser ignorados"

O Supremo Tribunal Federal (STF) determinou, por unanimidade dos onze ministros, o impedimento da repatriação imediata de crianças e adolescentes a países estrangeiros em casos de indícios de violência doméstica. A Corte terminou o julgamento nesta quarta-feira (27). A decisão se refere a julgamentos da Convenção de Haia, tratado internacional firmado para prevenir o sequestro internacional de menores, mas que nos últimos anos vem sendo acusado de agir de maneira automática, sem considerar o pleno bem-estar e segurança do menor.

A Suprema Corte julgou duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs): a ADI 4245, encaminhada pelo partido União Brasil, e a ADI 7686, enviada pelo Partido Socialismo e Liberdade (Psol). A primeira alegava que a medida que determina o retorno imediato da criança para o país onde nasceu precisa respeitar as garantias constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa. Já a segunda pede que os menores não sejam extraditados para outro país e retirados de suas mães em casos de violência doméstica.

No julgamento, os ministros do STF entenderam que a exceção deve ser estendida aos casos de indícios comprováveis de violência doméstica, ainda que a criança não seja vítima direta do abuso. Todos os magistrados acompanharam o voto do ministro-relator do caso e presidente da Corte, ministro Luís Roberto Barroso. Ele considerou que o texto da convenção deve ser interpretado de forma compatível com o princípio do melhor interesse da criança e com perspectiva de gênero, ou seja, da proteção da mulher.

Ao Correio da Manhã, o mestre e doutor em Direito Constitucional Rubens Beçak destacou que o julgamento do STF se trata de um caso de “interpretação conforme a Constituição”.

“Na interpretação conforme [a Constituição], e no caso de uma norma internacional como a Convenção de Haia, as normas recebem uma interpretação. Ou seja, uma decisão que o tribunal dá de como aquilo tem que ser lido, de acordo com o espírito que vai na Constituição. E esse é um espírito que norteia a proteção ao nacional, e mais especificamente, dá uma proteção a uma série de grupos, dentre os quais se esculpem as crianças e os adolescentes”, detalhou Beçak para a reportagem.

Raquel Cantarelli

Essa decisão do Supremo é a primeira resposta direta e geral para as chamadas “mães de Haia”, mulheres que tiveram filhos no exterior e precisam lutar na Justiça para ter a guarda das crianças em outros países. A maioria dessas mulheres tiveram que fugir do país onde os filhos nasceram por terem sido vítimas de algum tipo de violência, seja contra elas ou contra as crianças. E acabam perdendo a guarda da criança para os pais, que invocam em seu favor a Convenção de Haia.

O Correio da Manhã vem realizando uma série de reportagens sobres essas mulheres que precisam lutar na Justiça para terem a guarda de seus filhos. E um dos casos foi o de Raquel Cantarelli, exemplo vivo das exceções agora aprovadas pelo STF. Em 2023, Raquel Canterelli teve as duas filhas arrancadas de casa à força e levadas para a Irlanda, país em que nasceram e onde reside o genitor das crianças. A brasileira foi vítima de violência física, psicológica, patrimonial e mantida em cárcere privado pelo ex-marido, além de acusá-lo de abusar sexualmente de uma das filhas. Ela conseguiu fugir com as filhas para o Brasil, mas teve as pequenas retiradas de seus braços por conta da convenção e há dois anos luta na Justiça para ter as filhas de volta. O Superior Tribunal de Justiça (STF) chegou a dar ganho da causa para ela, mas ela ainda aguarda trâmites da Justiça da Irlanda para obter as crianças de volta.

“Eu recebi essa decisão do STF com muita emoção, porque ela toca diretamente na minha história e na minha luta para proteger minhas filhas. Durante muito tempo, mães e crianças foram silenciadas e revitimizadas pela aplicação da Convenção de Haia, mesmo diante de provas de violência. Hoje, com essa decisão, sinto que finalmente a Justiça reconhece que violência doméstica e abuso não podem ser ignorados”, disse Raquel Cantarelli ao Correio da Manhã

Para a reportagem, ela comentou que a decisão da Suprema Corte traz esperanças para que histórias como a dela não se repitam. “Essa mudança traz esperança para mim, que ainda luto pelo retorno seguro das minhas filhas, e para tantas outras mães que enfrentam a mesma dor. Essa decisão representa proteção, dignidade e o direito de viver sem medo. Foi um passo fundamental para que mães e crianças não sejam mais obrigadas a retornar para cenários de risco e violência”, reiterou a brasileira.

A Convenção de Haia foi firmada em 1980 e visava impedir o sequestro internacional de crianças e de adolescentes. Se acionada, ela determina que a criança precisa ser encaminhada de volta ao país em que nasceu. Contudo, na época ela não considerava casais internacionais e, como dito anteriormente, vem sendo criticada por agir de maneira automática, priorizar a questão geográfica. Mas com a decisão do STF, outras famílias como a de Raquel Cantarelli poderão ser poupadas de separações indevidas.